Para analisar o valor de nossa moral, Nietzsche opõe dois universos espirituais: o dos senhores e o dos escravos. Esta oposição designa a um só tempo contraste entre ideais e entre modos de existência.
Nossa moral é de escravos, e seus valores vão se construindo ao redor de um determinado ideal de convivência. Nosso imaginário social projeta como padrão de excelência uma convivência sem conflitos, na qual se imagina possível viver então a felicidade.
Sem igual, no século XIX, viu-se a intensa procura desse estado idílico no qual os conflitos desapareceriam, superadas as 'contradições', tornando possível ao "rebanho humano" viver em paz.
Tal ideal de convivência supõe, tacitamente, uma certa antropologia. Se os indivíduos não entram em conflito é porque nada mais pretendem da vida; suas vontades estão inertes. Por isso, somente, vivem a felicidade do repouso, como definida por Espinosa.
Assim, nossa moral pregará -no "tu deves"- as qualidade que tornam a vida absolutamente plácida, a exemplo do altruísmo, a piedade, o desinteresse, um ideário que apenas expressa uma VONTADE ANÊMICA, a que está na origem de nosso desejo de crenças e convicções; A NOSSA CONSTANTE NECESSIDADE DE RESPALDO EM UMA 'VERDADE', UMA RELIGIÃO, UMA CONSCIÊNCIA DE PARTIDO.
Eis a razão pela qua NOSSA CIVILIZAÇÃO ENALTECE A OBEDIÊNCIA e fixa o comando ao lado da má consciência, promovendo como figura do ser humano um indivíduo preparado exclusivamente para a subserviência -um escravo, um homem domado, o "animal do rebanho".
Paralelamente à noss moral e ao nosso ideal de convivência (que se acreditam únicos) , houve, como assevera Nietzsche, uma outra moral e um outro modo de encarar a existência. É o universo dos senhores que o filósofo crê redescobrir ao analisar a vida grega anteriormente à "decadência platônica".
Desde a sua juventude, quando pesquisava a vida grega no mundo homérico, Nietzsche distinguira, ali, um ideal de convivência oposto ao nosso -UMA VIDA CONSTRUÍDA A PARTIR DO ELOGIO DO CONFLITO, não de sua supressão.
É o que se infere daquilo que seria o "verdadeiro significado" do ostracismo como ímpar instituição na antiguidade grega. Se os gregos expulsavam da cidade alguém que se sobrepunha aos demais, essa conduta não era entendida como um freio, mas um estímulo. O grande era expulso para que os mecanismos de luta fossem restabelecidos, voltando a disputa como o cotidiano dos demais.
Nietzsche ensina que esse grego não conhecia felicidade sem luta, ou vitória sem embate. Sua vida era a expressão da VONTADE DE POTÊNCIA, em consonância com o vir-a-ser de Heráclito, condição de permanência das tensões e dos conflitos.
O mundo do escravo, agora, será aquele onde o indivíduo sofre com o mundo, dele tem ressentimentos que o levam a querer a vingança contra o senhor, negando o seu mundo.
O escravo já não quer abolir a dor, porém, encontrar um sentido para o sofrimento.
Afinal, ainda como tão bem assevera Nietzsche, não foi a dor que atormentou os fracos e sim a falta de sentido para essa dor; sentido que ensejou a criação dos seus ideais, tudo num contexto onde se destaca a civilização cristã como 'anestésico ideológico' de uma existência sofredora.
(Caos Markus)
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