Madrugada adentro, na insônia que insiste em me fazer vigilante, eu tenho recebido inesperadas visitas. Noite dessas, Barbosa (o Ruy) me fez severa advertência: "-Pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem, as que mandam e desmandam em tudo; a saber, num país onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando". Mas Ruy -ponderei- os tempos são outros. Nem bem terminei de falar, sou tomado de surpresa com a entrada de um poeta em meu escritório (seria ele um amigo de Barbosa!?). E com a certeza de que o clamor de justiça se perde no espaço e no tempo, entôou o bardo: "-Há dois mil anos te mandei meu grito, que embalde, desde então, corre o infinito". Já bastante entusiasmado com o papo, eu, perdendo a noção do tempo, retruquei: "-Vocês são por demais pessimistas, e certamente deixaram de acreditar no Estado como a forma da organização nacional". Subitamente, acorreu, em defesa dos meus visitantes, o doutrinador Luis Racasens Siches. Com a sua singular veemência, dirigiu-me a preleção: "-O grande erro cometido pelo transpersonalismo não se dar conta de que a coletividade não tem realidade substantiva, não tem um ser por si e para si mesma, independente do ser dos indivíduos que a compõem. Em troca, o ser do indivíduo consiste num ser por si e para si mesmo, num ser autônomo e idenpendente. Por isso, a coletividade deve respeitar o indivíduo, no modo de ser peculiar deste, nos valores próprios que lhe são destinados, e reconhecer a sua autonomia. O indivíduo não é pura e simplesmente uma parte do todo, ele é superior à sociedade, porque é pessoa no pleno e autêntico sentido desta idéia. A coletividade careceria de sentido se não se afirmasse como um meio para o indivíduo".
Eu, atento, ainda resistia aos brilhantes argumentos. E disse-lhes: "-Ouçam-me, amigos, estou sinceramente feliz com a visita que me fazem e não quero ser desrespeitoso, mas será que isso tudo se aplica, em caso concreto, ao Brasil? Será, em nosso país, o Estado adota a concepção personalística. sendo apenas um meio posto à disposição de pessoa humana do brasileiro? Vocês parecem querer me sugerir que o problema é político, e essa é a causa da má administração brasileira".
Quase que em uníssono, sou interpelado: "- A política repercute na administração, em quaisquer tempos. Mas hoje ela tem substituído a administração. Observe, Marcus, a majoração dos salários tem repercutido imediata e intensamente nos custos industriais e comerciais, logo consumindo, na voracidade tributária, o aumento demagógica e ilusoriamente concedido. É claro que em tal clima, torna-se impossível administrar com fecundidade". Neste instante, eis que novo visitante, um militar, de nome Castelo Branco, muito entusiasmado com a direção tomada na conversa, lembra a todos nós, não sem discreta gravidade, o que ouvimos com prudência: "- O preço da liberdade é a eterna vigilância".
Cinco da manhã e eu ali, na absoluta vigília! Momentânea pausa para um café e um cigarro.
Tomás de Aquino, recém chegado, insiste em esclarecer: "- O social e o político são atributos da essência humana na sua universalidade completa. Não se pode compreender o indivíduo sem o Estado, nem o Estado sem o indivíduo. O Estado é apenas um ser distinto dos indivíduos, e nada mais; é uma espécie de corpo místico, como a Igreja".
Um tanto confuso, um tanto cansado, o sono chegando, pergunto o Ruy o quê, afinal, ele recomenda. Sereno, Barbosa me diz: "- Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Amar a Pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem".
Deixei-os ainda animados, nem sinal de que pretendessem encerrar o colóquio noturno (e já era dia!). Fui dormir.(Marcus Moreira Machado)