O século XIX foi a época de maior desenvolvimento da terapêutica da loucura. Aliás, uma verdadeira revolução teórica . Após a hegemonia secular de um organicismo hipotético ou até metafísico, surge uma nova concepção sobre a natureza e a causa da loucura. Quanto à natureza, ela é, essencialmente, um desarranjo duradouro do discurso e dos atos, que não se ajusta à realidade circunstante, mas corresponde a idéias erradas sobre os eventos físicos ou sociais. Assim, a causa da loucura já não deve ser buscada em alguma presumida lesão estrutural ou funcional do encéfalo, mas na experiência do real. Essa experiência é entendida em dois sentidos: como processo de elaboração de idéias, a partir da percepção sensorial, e como exposição aos impactos afetivos da vida cotidiana, às paixões. A loucura tem como causa erros no conhecimento e resulta da formação de idéias erradas sobre as relações com as coisas ou com os outros. Advém de uma terepêutica reeducadora, que desapropriava um território secular da medicina, visto que todos os seus recursos pouco ou nada serviam para reeducar idéias e hábitos e para coibir vícios afetivos e passionais. Apesar do entusiasmo inicial, o “tratamento moral”, mal visto pela psiquiatria vigente e adulterado por aplicações inadequadas, durou poucas décadas e, desde a metade do século XIX, o velho organicismo recuperou sua hegemonia no pensamento e nas práticas da psiquiatria. Qualquer alusão a fenômenos psíquicos, a funções mentais e a qualquer enfoque psicológico era visto como especulação – coisa de “médicos filósofos”. As anomalias do discurso ou do comportamento eram apenas evidências de transtornos cerebrais. Dessa maneira, ao “tratamento moral” contrapôs-se triunfante o “tratamento físico”, destinado a provocar efeitos sobre o funcionamento do cérebro. A demorada observação do comportamento dos pacientes foi substituída pelo exame clínico. E, em vez de buscar correlações entre a história pessoal e a conduta anormal, passou-se a procurar, através da anatomia patológica, correlações entre os sintomas e as presumidas alterações no tecido cerebral. Na verdade o que se rejeitava era o papel causal da experiência na produção da loucura. Já entrado o século XX, uma correta "leitura" psiquiátrica dependia de uma anatomia-patológica que indicasse as lesões cerebrais da loucura, até então conjeturais. Os dados empíricos que o médico tem diante de si são, porém, apenas os sintomas, apenas a “forma clínica” da doença, ou seja, seu início, seu decurso e seu desfecho. Em meados do século XIX, grandes clínicos recomendavam que se considerassem, ao lado das eventuais lesões encefálicas, também as lesões à sensibilidade moral, às inclinações e pendores . Mas referiam-se às alterações emocionais enquanto resposta orgânica, antecipando a idéia de “ativação simpática”. . Esse objetivismo extremado da psiquiatria positivista começa a ser contestado nas primeiras décadas do século XX. Como efeito da difusão da fenomenologia e da teoria psicanalítica, a filosofia e a psicopatologia começam a interessar-se sistematicamente pela subjetividade. A natureza humana passa a ser procurada à margem das categorias da ciência, no homem concreto, do cotidiano, existencial. A subjetividade, antes rejeitada, adquire, no século XX, importância decisiva tanto na filosofia como nas inauguradas “ciências humanas”, notadamente na psicologia. O homem passa a ser visto como um “ser no mundo”, sujeito ou agente de processos afetivos; e não como um locus em que ocorrem doenças, ou como mero portador de distúrbios. O homem é, então, é pessoa dotada de auto-conhecimento, valores, afetos, desejos, e que reage de forma normal ou incomum aos eventos da vida. Na verdade, o termo “subjetividade” é a designação genérica para o universo da experiência pessoal; e implica processos cognitivos e afetivos, cujo estudo científico só então se iniciava. Em 1924,Freud escreveu: “(...) em outras palavras: a neurose não renega a realidade, mas apenas não quer saber dela; a psicose, porém, renega a realidade e tenta substituí-la”. Num primeiro momento, o 'eu' retira-se de uma realidade incompatível com as exigências instintivas do 'id' e, portanto, intolerável; em uma segunda etapa, tenta construir uma realidade substitutiva, mais conforme às pressões do id'. Portanto, o delírio, além de conter significados, exerce uma função defensiva, compensatória, a das tensões resultantes de conflitos anteriores, em solução fantasiosa, através de uma realidade substituta. É a compensação dos complexos.A própria dinâmica dos complexos tinha uma importância determinante nos sintomas: uma manifestação de algum processo mais primitivo, no plano existencial. Este processo é o da perda do contacto vital, instintivo, com a realidade. É o desligamento afetivo do fluxo temporal da vida, uma “anestesia afetiva”. A construção da personalidade será o desenvolvimento dessa relação existencial 'eu-mundo', preexistente a qualquer racionalidade. Esta idéia levará a nova visão da loucura: enquanto modo de estar no mundo, ela não é um modo errado, doentio, mas apenas um modo diverso de relação entre o homem e o mundo, muito mais que uma “patologia do psíquico”. Cada homem, portanto, enquanto 'ser' no mundo, apresenta, como constituição de base, uma certa proporção de cada um dos dois princípios vitais, que são, na verdade, graus de contacto vital com a realidade ambiente. Os sintomas da loucura apenas exprimem um modo peculiar de estar no mundo. Obviamente o conceito de vida aqui aludido implica movimento, mudança, progressão, identificação com o tempo que flui sempre para um futuro – no qual está sempre cada objetivo a dar sentido e destinação ao comportamento. Na falta desta vivência do tempo projetada para o futuro, o devir das coisas perde sentido, perde sua carga afetiva. O eu se desliga da vida, do fluxo vital. E então, como a razão não opera no vazio, na falta da realidade ambiente, surge um mundo imaginário, pobre, repetitivo e estereotipado. Através dele a vida psíquica sobrevive, degradada e empobrecida.Desse modo, depois de séculos, o delírio, essência da loucura, já não é a perda ou o extravio da razão: ele é a hegemonia da razão, liberta das conotações afetivas ou instintivas das idéias ou eventos -uma razão pura. Cada homem, ao nascer, enquanto um “ser no mundo”, começa a delimitar uma fronteira entre o que identifica como seu corpo, ou seu 'eu' , e o que lhe é estranho. Desvalorizadas a subjetividade do paciente e a indagação psiquiátrica sobre a vida afetiva dele, graças à presumida produtividade creditada à psiquiatria dita biológica, o louco-sujeito, e a loucura como modo do “ser no mundo”, são hoje assuntos da reflexão filosófica. A questão primacial é: o quanto do comportamento humano é produto das estruturas orgânicas e quanto ele resulta das experiências singulares de cada homem.
(Marcus Moreira Machado)