Dois fenômenos culturais surgidos na década de 60 causaram tamanho impacto que ainda hoje podem ser percebidos. Entre os jovens de boa parte das famílias ocidentais se alastrava uma postura rebelde, de recusa dos principais valores da sociedade burocrática e de consumo, enquanto uma nova geração de inquietos artistas plásticos propunha radicais questões para a arte e expandia seus limites. Os dois fenômenos apresentam experiências e influências em comum, sendo que um intercâmbio de aprendizados certamente ocorreu, apesar de terem se constituído como situações de considerável autonomia. Contracultura é uma designação ampla, geralmente associada aos hippies, que traduz a rebeldia dos jovens dos anos 60 contra os principais valores que o sistema cobra de seus cidadãos. A revolta foi principalmente contra a tecnocracia do mundo em que ainda vivemos, um mundo em que a eficácia produtiva e lucrativa é maquinalmente exigida dos trabalhadores, impossibilitados dessa maneira de um modo de vida realmente criativo. Apesar de o tempo todo recerbemos imagens e estereótipos bem limitados do que foi essa contestação, tratava-se de uma juventude bastante heterogêna, inclusive desorganizada, contraditória, sem um rigor ideológico que centralizasse as ações, que, contudo, lutou contra o autoritarismo, o moralismo, a hipocrisia, a burocracia, o racismo, o machismo, o consumismo e o militarismo.Não se pode perder de vista o caráter de conflito de gerações nesse episódio da história, pois não houve especial afinidade desses jovens com a esquerda tradicional, apesar do inimigo em comum. Hippies e marxistas tradicionais não viam o capitalismo explorador sob o mesmo ponto de vista, sendo que os primeiros discordavam quanto a trocar um industrialismo capitalista por outro socialista, e rejeitavam esse tipo de militância da mesma forma como evitavam tudo o que se remetesse a gerações anteriores. Muitas vezes com uma dose de ingenuidade, válida como tentativa, se arriscaram a fazer tudo como se fosse um exato oposto ao que seus pais fariam.O movimento hippie tem sua origem a partir dos beatniks, representados por escritores como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs. Estes, influenciados por Ezra Pound, mesclaram ensinamentos zen com rebeldia, e viveram à margem do sistema, apesar de não o terem confrontado diretamente. Seu ideal era o de viajar pelo mundo adquirindo toda forma de experiência que caracterizasse seu estilo de vida, principalmente aventuras sexuais, noites de bebedeiras com amigos e poetas, experimentos com drogas e aprendizados budistas. São comportamentos que foram legados alguns anos depois aos associados com Woodstock. Fato relevante é que os primeiros a transpor a liberdade beatnik para um esforço de transformação da sociedade foram os chamados Provos, de Amsterdam, que podem ser considerados os fundadores da contracultura. Em vez do famoso “drop out” beat, insistiram em permanecer em sua cidade e de fato conseguiram transformá-la. A palavra “provos” deriva de “provocadores”, batizados assim por um relatório policial e aceito espontaneamente pelos referidos. Tratava-se de um pequeno grupo, por volta de duzentas pessoas em seu auge, atuando de forma intensa e subversiva, entre julho de 1965 e maio de 1967. Inspirados no dadaísmo e em outras tendências artísticas, porém sem nunca se definir como movimento de arte, os provos se valiam de happenings para defender a legalização das drogas, a liberdade sexual, a liberdade de expressão, questões ecológicas e o boicote ao consumismo. Em 1965, criaram seu manifesto, expressando suas máximas. Por exemplo:provo é uma folha mensal para anarquistas, provos, beatniks, noctâmbulos, amoladores, malandros, simples simoníacos estilitas, magos, pacifistas, comedores de batatinhas fritas, charlatões, filósofos, portadores de germes, moços das estribarias reais, exibicionistas, vegetarianos, sindicalistas, papais-noéis, professores da maternal, agitadores, piromaníacos, assistentes do assistente, gente que se coça e sifilíticos, polícia secreta e toda a ralé deste tipo; provo é alguma coisa contra o capitalismo, o comunismo, o fascismo, a burocracia, o militarismo, o profissionalismo, o dogmatismo e o autoritarismo; provo deve escolher entre uma resistência desesperada e uma extinção submissa; provo incita à resistência onde quer que seja possível; provo considera a anarquia como uma fonte de inspiração para a resistência; provo quer devolver vida à anarquia e ensiná-la aos jovens.Em nenhum momento o grupo se apresentou como um movimento artístico, no entanto é evidente que eles tinham conhecimento da performance como meio, e a utilizaram de maneira lúdica a fim de chamar a atenção para seus objetivos.Os provos tinham seu jornal, onde discutiam questões raciais, feminismo, liberação sexual e legalização das drogas. Seguidores dos provos caminhavam em bando sobre automóveis e sabotavam escapamentos, por considerarem os carros poluentes e assasssinos. Lançaram bombas de gás de efeito moral sobre a carruagem real, humilhando o casal de princípes no dia de seu casamento (devido às ligações do princípe com o nazismo na Segunda Guerra). Elegeram um vereador e zombaram do poder, pois De Vris, o eleito, assumiu arrotando, descalço, em seu primeiro discurso (eles mal sabiam o que fazer com o cargo, queriam apenas esvaziá-lo de sentido). Planejaram comunidades nômades antes que os hippies se reunissem em seus acampamentos. Por fim, em 1967, os provos conquistaram alguns de seus principais objetivos. A própria Coroa holandesa, depois de perceber que a repressão policial não surtia efeito, sentiu-se obrigada a rever sua intolerância. É devido à atuação desses jovens que hoje Amsterdam conta com zonas onde o consumo de drogas é legalizado. Também pode-se contar como vitória dos provos uma maior tolerância com as questões racias e feministas em sua cidade e, por boa parte da sociedade holandesa, a aceitação da liberação sexual, além do fim da apreensão de jornais de mídia underground, ou seja, liberdade de expressão. Em 13 de maio de 1967, Provos dissolveu-se, em festa, por estarem -segundo proclamaram- cansados de bancar a entidade oficial de provocação, e para não se tornarem previsíveis, ainda que muitos de seus membros continuassem a atuar em transformações da sociedade, porém de outras maneiras. Um dos destinos mais comuns de ex-provos foi ingressar em lutas por causas ambientais. Para se ter uma idéia, o Greenpeace, notória expressão do Ambientalismo, foi fundado por alguns do seus ex-integrantes, ou seja, pelos outrora militantes desse viés do Anarquismo.
(Marcus Moreira Machado)