REMETENTE e DESTINATÁRIO alternam-se em TESES e ANTÍTESES. O ANTAGONISMO das CONTRADITAS alçando vôo à INTANGÍVEL verdade.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2010: "OTIMISMO"
Sou um crente por excelência. Minha fé cega não remove montanhas mas - e estou convencido disso - leva-me até elas. Sempre acreditei nos políticos, nunca, nem por um minuto, eu desabonei um projeto governamental, por menor ou por maior que ele fosse. Afinal, num país tão grande, assim imenso, de proporções continentais, não há como fazer milagres. Ainda assim, eu creio neles, muito embora eu não confunda patriotismo com fervor; este último, é ele o meu guia, movido por ele sou brasileiro “profissão esperança”. Quando todos, absolutamente todos, gritaram “fora Collor”, eu apenas murmurei: dá mais uma chance, ele tem uma carinha boa. Fazer o que... Democraticamente, derrubaram o Presidente, e eu me resignei, pois que democracia faz parte do meu credo. Nessa época, centenas de milhares de milhões de patrícios meus, do Oiapoque ao Chuí, por unanimidade suprapartidária, optaram pelo restabelecimento do meu país, depositando - assim como eu - nas mãos do Congresso Nacional a árdua tarefa de intermediar junto aos deuses do Olimpo a salvação da Pátria idolatrada. Aceitaram e eu também - um Presidente-vice, porque o mesmo espírito anima a todos nós, nordestinos e sulistas, o espírito da redenção definitiva, que resgatará das trevas todos os benfeitores da humanidade, no caso nós mesmos.
Ah! Como eu creio. Creio em todas as possibilidades da economia nacional, resplandecente potência esse Brasil.
“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Ninguém deixou; o amor venceu (aliás, sempre vence). “Diretas já”, e o que se viu? A multidão agradecida - assim como eu - jamais duvidou, sempre soube que tudo era uma questão de tempo... E de fé, muita fé. Pois, se a montanha não vem até Maomé, a Transamazônica desbravou a grande floresta e a Ferrovia do Aço foi até Carajás.
Pêro Vaz de Caminha, assim como eu, também era um apóstolo da fé. E ele - profeta que era - anunciara a farta vida que hoje todos desfrutamos. Aqui em se plantando tudo deu; até canabis-sativa, aos montes. Droga! Não fossem uns poucos pés-de-chinelo a incomodarem a polícia com granadas e metralhadoras, e eu até diria que vivemos no Paraíso. Não faz mal, minha fé é inabalável, inquebrantável. Sou cem por cento amor, o que faz de mim paciente com os pequenos erros de todos os nossos grandes - enormes! - governantes.
Aos domingos, em meio à suculenta macarronada, assisto às vídeo-cassetadas num televisor e aguardo, como muita fé, o sorteio do tele-sena, num outro aparelho. Não posso desanimar com tanta animação a minha volta. À noitinha, eu vejo os gols do formidável Fantástico, e mais certeza eu tenho de que os brasileiros são mesmo bons de bola, não importa o tamanho dela.
Como eu sou feliz!
Segunda-feira é a primeira conta do meu rosário, no terço que rezo em sete dias. Pago a promessa que fiz quando pequenino: ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil.
Como eu sou feliz!
Meus filhos estudam em Escola Pública, são atendidos em hospitais públicos, passeiam em praças públicas... E eu me sinto um milionário, pois, afinal, tudo é pago com os impostos que pago. A ordem e progresso positivistas de Comte tremulam no pavilhão da minha esperança.
Sou cliente especial e a minha fila no banco é indiana e não serpentina; voto em plebiscito e, quem sabe, até em referendo; tenho duas profissões, sinal de que sou inteligente e capaz, não me faltando, nunca, oportunidades de trabalho. Na minha terra tem palmeira e sabiá, tem coqueiro que dá côco; tem até excedente de produção agrícola que exportamos para não jogar fora. Nada disso bastaria, não fosse a minha fé.
Por nada me faltar que não seja necessário, pensei num singelo pedido, desses pedidos que só se faz quando não se precisa de mais nada:
Eu quero ir embora daqui!
(Marcus Moreira Machado)
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE JANEIRO DE 2010: "PRANTO"
Se é para chorar eu não desperdiço lágrimas: me arrepio todo e, passional como um latino autêntico, mergulho em pranto com “Perhaps Love”, no vozeirão hispânico de Plácido Domingo , mui bem temperado com veludo country do sussurro romântico de John Denver. E, por mais que queira dar ouvidos à mensagem da “folhinha”, advertindo-me com brandura - “Não se apegue ao passado. O importante é de agora em diante” -, eu sei é que Piazzola me faz lembrar uma outra época de um outro lugar onde jamais estive; “Adios Nonino” é comovente “Verano Porteño” faz de mim um estrangeiro, quase que à maneira de um Camus; o bandoneon do argentino enleva minh’alma, assim mesmo, com direito à apóstrofo parnasiano sem modernismo algum, mais Bilac que Raul Bopp.
Misantropo, ou quase isso tenho alguma aversão ao lugar-comum vulgar e erroneamente denominado “sociedade”. Essa paúra ,esse desespero de gentes hostis, essa maldade reinante...isso tudo jamais me faria chorar. Sou mesmo um sentimental e acho isso bastante natural, porém, sou avesso às lágrimas de crocodilo desse bicho-homem, besta-fera que quis inventar um mundo difícil e cruel só para justificar a piedade e a justiça; ora, não haverá nada mais justo que a exata noção de equilíbrio, de harmonia, atributo que da divina criação parece apenas humano ser não mais conservar.
Não faz muito tempo, quase que êxtase, ao som magnífico das belíssimas canções Andrew Lloyd Webber, eu exclamava ao meu irmão, músico por sinal: não há outra genialidade comparável à dos músicos...esse poder de contágio, essa gratuidade no convencimento...a linguagem que rompe os limites dos discursos a da retórica política da simples sobrevivência para alçar vôo à infinitude da existência.
É disso que o mundo precisa, eu disse. A vida em plenitude é toda a essência revelada em poesia.,aliás Drummond confessara ter procurado nos versos o rítmo que não conseguira na música, por falta de vocação, talvez. E o que é o verso senão cadência , harmonia, em ruptura à inércia do sentimento não experimentado ? Stravinsky compõe, de certa forma, versos em sua exótica melodia “A Sagração da Primavera”, quando, em harmonia constrangedora e com ritmos violentos, retrata pela música meio dissonante um sacrifício humano para celebrar a renovação da Terra. Nele moços e moças dançam, jovens como a primavera, para no fim um deles morrer. Igor Stravinsky tem esse dom, a ambigüidade do poeta que pela música enlouquece, mas também é capaz de erguer o ouvinte aos céus.
Quando Alfonsin assumiu o poder na argentina, eu chorei. Mas não chorei apenas porque me comoveram as lágrimas das “locas da plaza de maio”, as mães do desaparecidos durante o governo militar daquele país. Chorei por que a notícia foi dada ao som de “Dont” cry for me Argentina”, do Webber. Naquele dia eu não era mais brasileiro ou portenho ou latino, somente eu ganhava nova identidade, um cidadão do mundo, com lenço e documento - um passaporte para a viagem do espírito peregrino.
No entanto, por quem os sinos dobram nesse miserável cotidiano de tribos urbanas ? Por que esse lamento, essa lamúria pelo leite derramado ? Afinal numa terra em que se plantando tudo dá, por que deixar a erva daninha vingar dona desse imenso latifúndio ?
Eu até gostaria de ser mais sensível aos males que afligem essa página de sangue do livro em que escreve o história do Brasil, ou melhor, que retratam a triste condição de alienados - na mais pura acepção da palavra - em que se tornou a imensa maioria dos brasileiros; contudo, já não sou mais capaz da lidar com os mesmíssimos problemas de quando,eu ainda eu adolescente, era chamado “um revoltado”.Não é a maturidade propriamente dita, pois que se fosse isso eu seria agora forçado a concluir que, ao contrário de mim, muita gente voltou à puberdade, entendida essa como aquela fase em que todos são revoltados. Ou hoje a grita não é geral ? Ou hoje quarentões ou cincoentões não se queixam de tudo e todos, resumindo um país exclusivamente pelo que ele tem de ruim ?
O masoquismo, esse sim já não me convém; o altruísmo e o estoicismo , esses sim já não fazem mas parte de minha ideologia, se é que ainda tenho uma, se é que mundo necessita verdadeiramente de alguma . Se não canto - por não apropriado - Zé Rodrix , e nem penso mais em carneiros e cabras solenes em meu jardim, definitivamente eu sempre acreditei na mágica força das artes. Não por menos, Cândido Portinari retratara o flagelo das secas nordestinas muito antes da instituição de uma equivocada SUDENE; e na música, o forró, o baião, o maxixe, de um excepcional Gonzagão choraram na sanfona a miséria e o sofrimento do seu povo.
Se é para chorar eu choro ao som sincero e comovente dos músicos e dos artistas, sempre pioneiros em antecipar o sentimento maior da solidariedade, a ela consagrando a sinfonia que merece.
(Marcus Moreira Machado)
DOMINGO, 10 DE JANEIRO DE 2010: "PROGNOSE"
Por mais contraditório que possa parecer, a expansão das "empresas nacionais" deve hoje substancial credito do seu financiamento ao capital oriundo dos países subdesenvolvidos. E, se há uma diferença entre os interesses empresariais e os objetivos meramente políticos sobre esses países, certamente ela reside na visão dos executivos -restrita aos lucros e ao capital de financiamento proporcionados pelo mundo subdesenvolvido, enquanto que para os governos das nações desenvolvidas, o subdesenvolvimento em nada impede, muito ao contrário, que os países pobres sejam "contribuintes" no balanço de pagamento dos ricos.
As características das estruturas mundial e nacional apresentam-se, pois, de maneiras bastante distintas, situadas, todas elas, na superposição de situações de desenvolvimento ou evolução, momentos de mudança e épocas de "crise", interligadas, umas e outras, entre si.
Dessa forma, no Brasil, compreendida a "crise" como provisória circunstância, ela é, de fato, o reflexo imediato da "má administração do desenvolvimento e da mudança".
O país, agora um simples espectador da sofisticada tecnologia estrangeira, ainda não alcançou a fundamental "liderança técnica" que, a despeito da superação da "crise", possa garantir-lhe a "competência " como defesa às imprevisões futuras. Nesse aspecto, o Japão, se é atualmente exemplo ímpar na Economia mundial, não o é por acaso; souberam os nipônicos "copiar" a tecnologia norte-americana, adquirindo-a, sistematicamente, através de sucessivos "contratos de licenciamento", privilegiando-os sobre os investimentos estrangeiros.
É de compreender-se que a formação de estoques de capitais é uma "decisão humana" específica, comportando a aquisição do conhecimento como base do processo. Porém, sem o aprimoramento das "estruturas internas políticas e econômicas", não há que se falar em conversão dos recursos em melhor economia e mais organizada sociedade, pois que a criação da riqueza provém de anterior difusão do conhecimento, a partir do restabelecimento das instituições criadoras dessa mesma riqueza.
Modernamente, contrariando o período inicial da exportação do capital, em que o financiamento se operava pelos recursos exportados do país investidor, a mobilização desses recursos é feita no próprio mercado do investimento, diminuindo substancialmente as transferências de capital do país originariamente investidor. Obviamente, a "complementação" se faz pela participação financeira governamental e dos bancos de investimentos, como bem ensina Paulo Freire.
Colaborando, também, com a escassez dos estoques de capitais, os subsídios aos bens importados, indiretamente, através da isenção de impostos, repercutem na economia nacional, depauperando-a ainda mais, posto que, aumentando a competividade do produto estrangeiro, leva o país à ociosidade e ao desemprego, em verdadeira discriminação contra a indústria nacional. E, mesmo que o mecanismo adotado seja a redução das alíquotas de importação, diminuída a produtividade interna, subtrai-se a capacidade das reservas cambiais.
Ora, se existir de fato a pretensão de erradicar-se a inflação, sem o receio de conseqüente recessão, há que se promover, seja qual for o governo, reformas estruturais capazes de intervir definitivamente para a aquisição de "Know-how", impedindo-se o monopólio da pesquisa que determina a “transferência" de tecnologia apenas pelo pagamento de "royalties".
A má administração do desenvolvimento e da mudança, mais uma vez é a responsável pelo longo período de transmissão denominado "crise", considerando-se aqui não a impossibilidade e sim a falta de decisão humana ou, mais apropriadamente, a ausência de vontade política.
Coniventes ou não, os governos de países subdesenvolvidos têm permitido que esses se tornem "plataformas de exportação", expressão utilizada por Celso Furtado para explicar a estratégia dos países desenvolvidos que, procurando se instalar em áreas onde os salários são baixíssimos, empreendem a reconquista do mercado interno a partir do corte do custos de produção. Proclamar severo combate aos oligopólios sem observar a natureza da concorrência oligopolista, será sempre discurso sem conteúdo, desatento ao modo como as grandes empresas, através dos "holdings", procuram expandir-se pelas nações pobres. Diversamente, o incentivo fiscal e tributário às pequenas empresas é forjar a imprescindível "identidade econômica" de que precisa não apenas o Brasil, mas todos os países hoje dependentes das nações economicamente desenvolvidas.
A contradição que se verifica nas nações do mundo subdesenvolvido, coexistindo, lado a lado, abundância de matérias-primas, poderosa força de trabalho, e a extrema pobreza traduzida pala mendicância e prostituição, é, deveras surpreendente. Mas, identificados os males, cabe reconhecer as suas causas; não há cabimento, no caso, para o fatalismo que apregoa total carência de infra-estruturas que permitam o desenvolvimento gerador de riquezas, pois essa condição de prosperidade não nasce por si só, antes depende das decisões governamentais específicas, no sentido de preparar um futuro.
Mais outra vez cumpre notar que o elemento fundamental desse processo de emancipação é o "conhecimento", não o transferido, mas sim o adquirido.
O futuro, dessa maneira interpretado, não será obra do acaso, porém o desdobramento planejado passado que o previu.
(Marcus Moreira Machado)
SÁBADO, 9 DE JANEIRO DE 2010: "LÚDICO"
A multidão circula pelas ruas, disputando espaço com automóeis, ônibus e ciclistas. Multidão e veículos não são apenas um grotesco movimento; fazem parte de uma cena impressionista, a ocultar verdadeiras formas, encerrando conteúdo não revelado; não há transparência. Nesse instantâneo, todos fazem por acabar com mais um dia, por adiar a paz, na mais pura tradução de uma vida circular e confinada. Em grande expectativa, é o mesmo que se espera com o futuro.
Como em Edgar Allan Pöe, há segredos que não se deixam revelar. Homem e chusma confundem-se em surpreendente envolvimento, no terrível medo de se estar só; é como se o amanhã não devesse existir. Então o alarido, o som das buzinas, as luzes de neon, placas, cartazes; o mundo em liquidação. Tudo como se possível fosse afugentar, também, o martírio do presente, um futuro imediato. Por isso, o homem é bicho enjaulado em tudo o que ficou como pretérito. Qual um condenado, ele só pode reviver fatos e sentimentos, em inútil resgate de si mesmo. Porque o passado é ameaça para quem quer escapar da vida; ele invade a alma e deixa sensação de que a vida não é, não foi, jamais será. E tudo é feito no exato momento em que ela é ânsia por si mesma.
Sem a esperança daquilo que não é, não existe, mas pode vir a ser, perde-se a força do sonho transformador. Substituindo-o, o realismo responsável nada constrói, antes é a própria estagnação, em reacionarismo demagógico. Destituída de fatores objetivos, a sociedade assim organizada evita buscar os elementos mediadores que assegurem a futura existência do que hoje é impossível. Então, teme-se a morte, mas não é outra coisa o que se pratica. Não se permitindo experimentar a plenitude, o homem civilizado prefere a morte adiada, cultuando- a como a um deus que aplacará o fantástico e absurdo da imensurável existência. Ele confessa o seu medo, por desconhecida que é,a morte, mas, parceiro dela, não admite o seu terror à vida, pela fragilidade que lhe é inerente. Aquela é vigorosa, iminente e fatal; esta é somente uma formidável promessa, jamais cumprida.
A “realidade da própria antecipação visada” pela imaginação utópica não delirante é “a única realidade plausível que existe”; negá-la é negar a imaginação concreta, a trabalhar não só com dados reias como também com a vontade do homem; recusá-la é antecipar a morte, escondendo-se nos movimentos circulares das multidões delirantes.
Na “tendência do coração humano a torturar-se a si próprio, levada ao último limite”, a imaginação utópica, interior ao homem, não pode ser desprezada em prejuízo de sua vida. A previsibilidade de mundos rigorosamente ordenados’ garante exclusivamente o poder dos que se entendem iluminados na condução da humanidade; ao contrário, a imaginação do concretismo utópico é uma necessidade na sobreposição dos clamores falsamente civilizatórios e libertários.
A “resignação com a possibilidade do aniquilamento total” do ser humano há que ser alterada quando houver disposição para o reatamento dos vínculos com a essência natural, verificada no passado. Pois hoje, como se a cibernética tivesse adotado nossos critérios nos sistemas de controle do organismo humano, o homem tem perdido o seu maior direito - o de sonhar, e o de transformar o seu sonho em realidade concreta, numa proximidade imediata. Assim, ao mesmo tempo em que perde a sua identidade, criando “o tipo e o gênio do crime profundo: o homem que não pode estar só”, ele refugia-se em suas instituições estagnadas, em verdadeira prece a um deus que inventou e em precisa acreditar. Isto porque tem perdido a capacidade de crer em si mesmo, rendido à liderança que outra coisa não faz se não limitá-lo de tal maneira a nutrir hostilidade contra os seus desejos mais genuínos e mais íntimos.
O homem tem se tornado um conservador, seja ele um governante, seja ele um governado. E desse conservadorismo advém a insânia, a decretar o “suicídio”, a negação da vida, como aspiração “natural”. Como é a contradição entre a sua natureza real e o que se lhe projeta como “ideal”, ele sucumbe, e passa a não mais suportar a sua permanência neste mundo, por desconfortante que é.
Resgatar crenças que indiquem um lugar melhor, a situar-se neste mundo mesmo, será estar mais próximo da vida e da felicidade que encerra.
(Marcus Moreira Machado)
SEXTA-FEIRA, 8 DE JANEIRO DE 2010: "CALMARIA"
De várias maneiras, andam descobrindo o Brasil. Há sinais de proximidade de terras, como há escrivães de plantão, sempre prontos à narrativa de tão auspicioso descobrimento. A cultura nacional, também, a cada dia é redescoberta, como segmento de raízes mais nobres. E, ainda que matemos, roubemos, julguemos e condenemos, somos fidalgos.
Em "Calabar, O elogio da traição", Ruy Guerra e Chico Buarque lembram, na voz emocionada do personagem Mathias: "Sabe, no fundo eu sou sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo. Além da sífilis, é claro. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora".
Mathias de Albuquerque, "governador e comandante supremo de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande" só faz lembrar uma certa hereditariedade, mesclada entre o atroz e o passionário, presente no caráter nacional. Pois, acrescenta a cantiga: "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, /Ainda vai tornar-se um imenso Portugal. /Ainda vai tornar-se um Império Colonial".
Por isso esse Brasil, esse país colonial, descoberto aos poucos, essa "erva marinha", esse "rabo-de-asno" indicando a promissão que nunca chega. Coincidência ou não, Pascoal recebeu esse nome em virtude de ser o tal monte o primeiro ponto avistado pela maruja de Cabral, no dia de uma das oitavas da Páscoa; e hoje todos esperamos, ainda, que venha a ser uma Canaã, como de Deus fosse realmente brasileiro e nós os únicos de Abraão.
Porém, já é chegada a hora de darmos nome ao boi, isto é, ao povo destas plagas. Porque se somos assim tão pacientes, de qual adjetivo nos servimos? O "paciente-resignado", o "paciente-sofredor", o "paciente-manso", o "paciente-doente", ou aquele outro tipo, "o que recebe a ação de um agente"? Ou seríamos todos eles simultaneamente? O quê é bem mais provável, dada a aparente complexidade a permitir até uma "especialização sociológica" - os "brasilianists", estudiosos supostamente ilustres porque hipoteticamente examinam e entendem melhor do Brasil e dos brasileiros do que nós mesmos.
Essa nossa condição de colonos reflete-se, notadamente, nas fontes de inspiração aonde buscamos paradigmas à nossa evolução. Exemplos não faltam. como é o caso de legislações consideradas de primeiro mundo que procuramos imitar, sem, no entanto, a devida atenção para o contexto de quarto mundo em que vivemos e, portanto, a sua inadequadação.
Aqui tudo é virtual. Tudo existe como faculdade, mas sem exercício atual ou efeito atual. Pois, não se diz que o Brasil tem uma inigualável riqueza potencial? E o que é isso senão uma realidade intrínseca, porém não revelada? Esse conformismo de que somos o país do futuro, de que somos o futuro do país, essa a grande potência e tudo o mais, somente nos projeta para o passado, numa constante "redescoberta". Talvez isso explique a megalomania, típica dos inseguros, característica de um sentimento de inferioridade que se procura esconder.
É a espera do porto seguro, das boas relações com os "amistosos nativos", ainda que tenhamos nos tornado selvagens, em nova edição da antropofagia. Por acalentarmos a idéia de que vivemos num paraíso é que, a cada dia, é maior o inferno, nesse ritual de sangue e tragédia que tem marcado a inglória nacional. promovendo o infortúnio e a insegurança como norma de conduta.
Não há terra à vista. Nem mesmo a mais insignificante bodelha a indicar prosperidade. Se algum contemporâneo escriba relata a fecundidade de uma nova Cabrália, o faz para exclamar: "aqui em se plantando. . . tudo se dá. Como que ainda dominado pela entidade maléfica de anhangá, a nação brasileira vive do prosaico, reciclando a sua história, à bordo de um aquidabã supostamente intrépido, todavia, reduzido à decadência e ao fracasso.
"Quando me encontro no calor da luta / Ostento a aguda empunhadura à proa / Mas o meu peito se desabotoa / E se a sentença se anuncia bruta / Mais que depressa a mão cega executa / Pois que senão o coração perdoa". Versos que expressam dualidade, retratam a propensão quase que natural, a índole, por assim dizer. dessa raça ambígua. Hesitamos, certamente, entre "um sereno jeito" e o "golpe duro e presto", na "distância” entre “intenção e gesto".
De fato, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso arraial. E, no elogio da traição, não mais distinguirá herói de traidor, no moto perpétuo do recomeço, mais ensaiando que principiando. O rabo-de-asno deverá deixará de ser erva marinha para ser daninha, anunciando baderna à vista. E aquela teoria de que o Brasil foi descoberto por obra do acaso será então definitivamente confirmada, porque não pelo mesmo motivo é que se faz tão pouco caso; o descaso não é descoberta" e sim a mais extravagante "invenção".
O Brasil dos viajantes quer ser mesmo deles; não apenas pintura de Debret ou Rugendas, o país insiste em não passar de itinerário na "Viagem Pitoresca ao Brasil", subsidiando a antropologia com um fato manancial iconográfico. Afinal, com fauna e flora assim tão exuberantes, tão exóticas, seria, a priori, até compreensível que, em espetacular processo de simbiose, nascesse uma "sui generis" espécie humana, parasitariamente vivendo sobre o topo de outras mais elevadas.
E, com ‘avencas na caatinga’, e ‘alecrins no canavial’... Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal !
(Marcus Moreira Machado)
QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2010: "VERITAS"
Contemporaneamente, assim como Pilatos, encontram-se, abrigados em suas fortalezas políticas, homens públicos que resistem em curvar-se diante da verdade. Parafraseando o antigo procurador romano, governantes de hoje também perguntam o que é a verdade. E, por não terem nem dignidade, nem princípios, burlam o tempo todo, artífices que são de sensacionais patranhas.
Sofismar é verbo da atualidade, quando multidões inteiras têm sido vítimas da arte de lograr. Onzeneiros profissionais, falsos líderes fustigam - da comodidade e segurança das suas tribunas - a intriga e a infâmia. Outra preocupação não há senão a de aturdir, no inconseqüente burburinho, a opinião pública. O vulgo, presa fácil da achincalhação, sempre um adventício em seu próprio território. A ambigüidade substituiu o caráter e a dissimulação pretende olvidar a verdade.
Apóstolos da incredulidade, os novos procuradores da plebe propagam, pela doutrina da sedução, o aliciamento dos incautos forjados na falsidade. Os crassos, em obediência desvairada, não percebem habitar o arrabalde do poder. E a pêta grassa país adentro, imiscuindo-se na honorabilidade nacional, em execrável e torpe conduta peculiar aos ignominiosos.
Saber o que é bom e trilhar o imprestável é característica dos egoístas que, por comodismo, tornam-se capazes de tudo, menos de seguir o equânime.
Pois, que tremebundo rincão o nosso! A vileza tem primazia sobre o decoro; a miserabilidade é a elegia da turbação a que foi subjugada a prole dos desafortunados. Proceres messiânicos prometem a abastança, na basófia dos insolentes! E, a mossa se faz sentir no litígio dos abjetos.
“Quid est veritas? A verdade não é de quem não tem a sua própria.
“Quid est veritas?” A evidência dos fatos revela, senão a verdade, todo o embuste para ocultá-la.
Há verdades históricas cujo conhecimento se impõe. Desprezar, duvidar, negar o valor das verdades históricas é assumir a insensatez ou a perversidade. Pois, carecemos de homens circunspectos, e padecemos de depravação.
Ou a necedade aprova o descalabro moral, por desconhecer o império da razão, ou a corrupção reprova o discernimento, por conhecer a impertinência da verdade na conquista da insânia coletiva.
“Não servir sem independência a justiça, nem quebrar da verdade ante o poder”, aconselhou o mestre Ruy Barbosa, em “Orações aos Moços”. Quizera ele descobrir o que era a verdade? Parece-nos que o eminente jurista reverenciava a verdade, curvando-se a ela como a um ente supremo. Assim demonstra, quando recomenda: “Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis”.
Lamentavelmente, agora apenas ouvimos a proclamação do impropério, quando a harmonia é tragada pela pusilaminidade daqueles que escamoteiam as verdades históricas e, com elas querem sepultar tudo o que é magnânimo. Mas, há de triunfar a razão, porque tem ela seus princípios de evidências, seus liames de idéias, seus confrontos de afirmações ou juízos, seus ap
rumos de raciocínio, o que nos levará a todos a conclusões mais seguras; tão mais seguras que negá-las ou duvidar delas é loucura, ainda que, por vezes, voluntariamente, alguém feche os próprios olhos, não querendo, deliberadamente, enxergar.
(Marcus Moreira Machado)
QUARTA-FEIRA, 6 DE JANEIRO DE 2010: "CARDÁPIO"
Se você não faz acontecer acontece com você. Então, cresça e apareça; não fique choramingando pelo poder miúdo e consagrando a máxima de que " a vingança do anão é pisar na sombra do gigante ". Mesmo que você não saiba, faça a hora e não espere lhe acontecer; o resto você aprende no caminho. Não seja Sancho Pança e nem Dom Quixote, procure ser o próprio Cervantes. Mas... Cautela! Não vá fazer como Narciso e condenar-se ao amor impossível, desprezando a todos, e descobrir muito mais tarde que a linda imagem era a sua própria, desfazendo-se em círculos quando você tentasse acariciá-la nas plácidas águas do lago.
Não haverá jamais soldados dispostos a lutarem ao seu lado se a causa não for justa. Pois, invente uma justa causa, qualquer uma, porque não vai fazer diferença a diferença de ideologia; o que importa é convencer o batalhão de que a nobreza dos ideais a ele pertence. Todo mundo quer muito mais ser nobre do que idealista, ainda que por nobreza se entenda o apoio emprestado ao líder. É mais ou menos assim: ser ascensorista no Othon Palace Hotel é ser peão cinco estrelas, e o resto não interessa e nem tem pressa.
Por isso tudo e mais um pouco, repita mil vezes o seu nome, como se fosse propaganda da Coca Cola ou da Bom Bril. Crie a sua marca, o seu logotipo. Diga sempre "nós", com a prudência de usá-la no plural majestático; o "nós" iremos construir isso e mais aquilo... o " nós " dividiremos tanto para tantos... Mas sempre esse " nós " que na verdade significa você e só você mesmo, dando a impressão de que você está com todo mundo, porém tendo a certeza de que todo mundo é que estará com você.
Complicado? Nem um pouco. Só requer disposição, garra, vontade de vencer, ou melhor, muita vontade de derrotar sem que ninguém se dê conta disso. É necessário apenas não 'ter medo de ser feliz', mesmo que isso custe a infelicidade alheia. Aliás, 'mesmo' não é a expressão mais correta nesse caso; seja feliz 'por isso mesmo', pela infelicidade dos outros, mas não a sua.
Não é difícil entender como proceder. Mais ou menos como pastor que para expulsar o demônio tem antes que evocá-lo (e pouco interessa se lúcifer exista ou não, importante é que alguém seja 'tomado' por ele para que possa, então, ser expulso, glorificando o 'exorcista'), você também deverá fazer com que outros e mais outros a- creditem em seus particulares poderes. Uma vez dependentes de você, uma legião de fanáticos o seguirão, todos bastantes felizes por isso. Entretanto, evoque, também um demónio qualquer e coloque-o na cabeça (ou na falta de cabeça, seria mais apropriado) dos tementes. Não venha com historinhas pacifistas, que essas duram pouco. Pinte um quadro de horror, de holocausto, de miséria e aniquilação. Todos preferem ser salvos porque sabem que são vocacionados para a maldade e não para o bem. Assim, 'salve-os' antes que alguém queira convencer-lhe de que você é que está em perigo; se isso ocorrer... bláu, bláu, nunca mais; você acaba tornando-se um discípulo.
E não é isso o que você quer, não é mesmo? Você não quer ter sucesso na vida, triunfar? admita que é impossível a vitória sem o correspondente fracasso, motivo pelo qual alguém terá que ser o perdedor; então, que esse não seja você e sim o outro que você jurará defender pela convicção que possui na justiça, na fraternidade, etc., etc.
Acredite em você mesmo. Quer dizer, acredite na sua imensurável capacidade de mentir e achar que é esse mesmo o melhor procedimento que pode ter um homem honrado e promissor. Nunca caia na tentação de resignar-se com as usas próprias necessidades financeiras; resigne-se com a miséria ao seu redor, porque você não pode salvar o mundo dos outros, embora viva prometendo que o fará, mas não só pode como deve fazer de tudo para salvar o seu mundo, aquele que às duras penas de terceiros, conquistou para si.
E, aceite um bom conselho, se algum engraçadinho quiser se meter no seu caminho e dizer que vai lhe desmascarar, tire você mesmo a máscara que está usando e troque-a por uma outra. Com certeza essa sua atitude vai conseguir desmascarar muito antes aquele que - ingênuo - pretendeu o absurdo de ser o seu adversário. No fim de tudo, também ele perceberá o quão útil é ficar do seu lado, como seu braço direito.
Essa receita do sucesso, para falar a verdade, eu ainda não testei. Estou fazendo isso agora, com você. Pelo jeito deu certo, pois ingênuo, acreditando em fórmulas mágicas de como viver no paraíso, você prestou atenção tim-tim por tim-tim nesse amontoado de baboseira; afinal, você foi 'educado' e condicionado a crer em qualquer um, menos em você próprio. Não é assim?
Se não for dessa maneira, prove-me o contrário, demonstre que você é forte e que vai me desmascarar. Contudo, todo cuidado é pouco. Observe antes se eu já não troquei de máscara, senão eu é que tiro a sua, e você logo logo acaba sendo meu discípulo, ovacionando-me pelo discurso que eu não fiz e que jamais irei fazer, mas que você acha lindo e faz questão danada de aplaudir.
Vem, vem comigo!
(Marcus Moreira Machado)
TERÇA-FEIRA, 5 DE JANEIRO DE 2010: "LINHA DO HORIZONTE"
Preciso saber o que está acontecendo, se é que alguma coisa realmente está acontecendo. Ouvi rumores; boatos dão conta de que o Congresso foi tomado de assalto por tropas de elite (comenta-se à boca pequena o confinamento do Presidente em exílio ainda desconhecido). Estou com medo; quero comprar cigarros, mas não tenho um salvo-conduto, e, se for verdade o toque de recolher, serei imediatamente preso e interrogado como suspeito provável do levante, responsável pelo golpe que tentou desestabilizar o governo revolucionário do partido pela libertação do povo oprimido - o temido “Estrela Cadente”. Vizinhos sussurram: dizem que será suspensa, por tempo indeterminado, a venda de combustíveis, pois quer-se evitar a fabricação caseira de coquetéis molotóv. Minha correspondência está atrasada e receio dar algum telefonema (estará grampeado o meu telefone?. Ainda tenho “louro-fino” e posso enrolar o fumo, mas e o adoçante, mas e o adoçante?! e o café?! Pior, se eu não conseguir comprar o jornal, como ficarei sabendo o que acontece lá fora?! Rádio nem pensar! Desconfio que as emissoras estão tocando “funk” por determinação do comando revolucionário; até a “Voz da América” só toca Michael Jackson e Madona (por que não instalei a antena parabólica?!!). Bateram à porta e não atendi; ouço sirenes a todo instante e creio que aquele estampido era o de uma bala perdida, mesmo parecendo com o som de escapamento “envenenado”. É melhor eu queimar os meus livros... queimarei os poemas de Drumond e as receitas de Dona Benta (foi assim da última vez, um meu amigo desapareceu quando assistia um filme de Costa Gravas, “Missing”, se não me engano; a casa dele fora revistada e apreendido em exemplar raríssimo do “Flash Gordon”, um personagem de subversão comprovada, segundo a polícia secreta, patrocinador de aventuras delirantes, um ópio do povo); vai que descobrem nos ingredientes do strogonoff a perigosa composição do reacionarismo burguês! Minha agenda também vai para o fogo - se descobrem quem é o meu irmão vão saber que tenho uma mãe, um passo para identificarem minha árvore genealógica o parentesco com o bandeirante Fernão Dias... e pronto, estarei capitulado! Afinal, foram os bandeirantes paulistas os responsáveis pela Guerra dos Emboabas; não pretendo correr esse risco.
Deixarei crescer a barba, pintarei os meus cabelos e vestirei macacão de metalúrgico; fingirei ser um homem do povo, todo sujo de graxa e fedendo como todo bom proletário deve feder para cair nas graças da emancipação da classe operária (preciso comprar um livro vermelho do Mao Tsé-Tung, “A prática” talvez; desencavar num sebo o “Literatura e Revolução” de Leon Trotsky, Leo Hubberman nem pensar - “História da Riqueza do Homem” é coisa de sociólogo, vão dizer, e o momento exige o rompimento com o passado, na aurora de um novo porvir).
Porcaria! como é difícil fazer cara de revolucionário, dá uma canseira danada. Vou me filiar no “Estrela Cadente”, em meteórica trajetória de iniciado em movimentos populares; quero assegurar o futuro dos meus filhos no novo governo. Pensando bem, para que pensar? Nunca foi a razão o verdadeiro império, o instinto tem guiado a raça humana muito mais que o raciocínio e a lógica.
Está decidido: vou delatar todo mundo, vou usar “botton” na camiseta, louvando o governo provisório, ainda que ele permaneça por mais tempo no poder. E se ele cair eu digo que sofri lavagem cerebral, que sempre ouvi Dvorak e li todos os artigos do Roberto Campos, e sou vidrado no neo-liberalismo. Vão acreditar? Claro que sim! Tanto a direita como a esquerda nunca precisariam de quem nelas acreditassem; o que nunca permitiram foi a sua ausência no poder, o que vale dizer que não precisam exatamente de seguidores, mas de quem não as atrapalhe, o que também vale dizer que se você tanto fez, tanto faz, é só fazer pose de quem não fêz mas que faz, e de que não faz, mas que fêz. Deu pra sacar?
Pronto, perdi o medo. Vou comprar cigarro ou charutos cubanos, tanto fez e tanto faz, eu quero mesmo é poder fumar; comprarei dietéticos, açúcar mascavo ou refinado, tanto fez e tanto faz, tomar café é hábito capitalista e socialista, ninguém vai desconfiar. Se perguntarem-me se eu penso, serei assim meio dúbio, meio reticente: “penso, logo desisto”. E, se confirmarem as notícias de estado de sítio, vou criar galinha caipira lá nos confins do meu estado interior, onde “o pensamento é uma coisa à toa, como é que a gente voa quando começava a pensar”. É voarei mais alto do que qualquer estrêla cadente, do que qualquer revolução decadente; e terei como guia a constelação do meu horizonte perdido, que ninguém quer porque ninguém vê.
(Marcus Moreira Machado)
SEGUNDA-FEIRA, 4 DE JANEIRO DE 2010: "TRATO"
Para melhor compreensão desse que, notável feito, alcança hoje função mais ampla, não mais restrito a mero indicador de valores, tendo adquirido mesmo qualidade de mercadorias, de um valor comercial internacionalmente reconhecido e, por isso mesmo, sujeito também às mudanças cambiais e as variações nas leis da oferta e procura; contribuindo com o esclarecimento sobre o originário atributo desse que atualmente já não é mais um simples meio auxiliar no intercâmbio comercial - o dinheiro; cumpre observar Aristóteles, resumindo para a sua época a idéia a respeito de moeda: "Tudo que é trocado deve ser comparável. O dinheiro serve a tal finalidade, tendo se tornado verdadeiro mediador. O dinheiro avalia e compara se e como um objeto é superior a outro valor".
Da mesma maneira pela adoção da Escolástica - uma filosofia fundamentada em Aristóteles -, a Igreja Católica entende que do dinheiro não pode surgir a criação de uma utilidade, combatendo duramente tanto a usura quanto o comércio, no que reabilitou o trabalho não mais como mercadoria e sim como dignidade. Como que a refletir preocupação com as conseqüências de um desequilíbrio, a instituição parece concordar com a descrição de Lísias, fabricante de armas e advogado, por volta de 100 e a.C., em Atenas, expressando-se sobre os grande comerciantes de então: "Apenas pelo nascimento são habitantes de nosso Estado. Segundo sua concepção, todo país que lhes confere vantagens é a sua pátria, por que consideram pátria não o lugar onde nasceram, mas onde conseguem aumentar as suas posses".
Já contrariamente a Aristótoles, defensor da propriedade privada e para quem o "valor" é uma "relação", não havendo valor intrínseco, sendo este então a utilidade atribuída individualmente a uma determinada coisa, originando-se da necessidade do comprador, outro sábio, Platão, condena com veemência a individualidade sob esse aspecto, pregando a excelência da propriedade coletiva; afigura-se, por esse prisma, aos modernos socialistas, devendo ser considerado precursor de tal doutrina, quando combate, ainda, o próprio comércio.
Na defesa do primeiro acode a sua seguidora, a Igreja Católica, entendendo a propriedade privada como a base da sociedade, um estado de civilização e de progresso mais avançado do que a coletiva. E, para tanto argumenta: em virtude do trabalho do homem surge a propriedade, naturalmente privada, como o seu resultado mais imediato. No entanto, recomenda não dever essa ser usada contra o interesse público, primando o social sobre o privado.
Curiosamente, no ano de 486 a.C., os plebeus, que tinham em Mercúrio o deus do comércio, liderados em Roma por Spurios Cassio, um representante bastante popular, promoveram a Lei Agrária, tudo no intuito de assegurarem para si o domínio sobre a terra pública, como espetacular fonte do comércio. Mas, a sua lei jamais entrou em vigor, considerando a condenação e morte de Cássio pela realeza, sentindo-se visada.
Não obstante, pouco depois, em data de 440 a.C., sob o pretexto das injustiças para como o povo, fez-se uma segunda tentativa para a fundação de uma tirania popular, frustrada também, com o assassinio do seu líder e promotor, Spurius Melius, por sinal um rico plebeu. As lutas entre os plebeus e os patrícios pela posse da terra não terminaria aí.
Mais adiante, já em 376 a.C., um dos dez tribunos do povo, Licinio, iniciou uma prolongada luta lançando determinadas propostas de lei - as Rogações Licinias - no objetivo de estabelecer um limite a quantidade de terra pública atribuída a cada cidadão, forma escolhida para favorecer uma distribuição mais ampla e eqüitativa.
É de se notar que com o aparecimento do dinheiro e o seu desdobramento mais próximo - a propriedade privada - o homem esteve motivado a produzir sempre mais do que o estritamento necessário para seu próprio consumo, substituindo, trocando a sobra, o excedente por poder e garantia de poder no futuro. Que tal situação modificasse constantemente as suas relações, consagrando ou privilégios, ou desvantagens com o surgimento de classe sociais, isso seria inevitável, ainda que instituições de grande poder, como é o caso da Igreja, proclamassem a necessidade de disciplina para evitar desarmonia entre ricos e pobres.
Assim, a expressão "proletário", contemporaneamente utilizada para designação totalmente diversa da sua verdadeira origem, significou no passado, por volta de 264 a.C., em Roma, quando conhecida por "proletarii", a divisão de eleitores perfeitamente qualificados como cidadãos, e cuja propriedade individual fosse inferior a 10.000 "asses" de cobre.
Agora, em fins do século XX da era cristã, decorridas muitas etapas do desenvolvimento econômico da civilização humana, obviamente não há que se admitir qualquer ingenuidade imaginável no trato do dinheiro como mercadoria que é, independente da sua função primordial, quando então não passava de veículo intermediário das necessidades de sobrevivência do homem na terra.
Avaliar hoje todo e qualquer projeto norteado exclusivamente nos aspectos econômicos, pela propriedade privada ou coletiva, desprezando-se a destinação social do dinheiro e não considerando outras culturais necessidades do ser humano, será flagrante desatenção aos erros do passado e descaso para com efetivas exigências da vida moderna, voltada para o homem em sua integridade, e não reduzida exclusivamente às frágeis garantias de felicidade pela estabilização financeira de um país.
(Marcus Moreira Machado)
DOMINGO, 3 DE JANEIRO DE 2010: "MERIDIANOS"
Cá neste rincão rococó, cá nestas plagas barrocas, encontrei noutro dia, em feliz e curiosa coincidência, todos juntos numa mesma praça, um pregador religioso, um sindicalista e um marreteiro.
Bradava o pregador a falência da vida temporal, conclamando os passantes a vicissitude da abundância no reino dos céus; bramia o sindicalista a falência do capitalismo, iniciando os transeuntes à fartura na próxima, nova e igualitária sociedade; proclamava o marreteiro a falência da velha e esfolada faca de cozinha, anunciando à multidão as inigualáveis vantagens de um revolucionário picador de legumes.
No mesmo exaltado tom, rivalizavam os três oradores-profetas de uma nova era, cada um deles querendo ocupar sempre mais espaço entre os fiéis, os proletários e os consumidores. E o povaréu ouvindo:
- “...à César o que é de César... vade retro satanás!!!”
- “... abaixo a burguesia... morte aos gringos imperialistas!!!”
- “... nada de faca, dona Xica... pica, pica, pica tudo... até língua de sogra!!!”
Não é que alguém não entendeu nada, misturou os discursos, e murmurou:
- “... compro a danada da maquininha, pico os tais gringos e me livro do demônio... E vou pro céu...!”
Um outro gajo, enfiado na multidão, acrescentou:
- “... desse jeito, a classe operária vai ao paraíso! “Em seguida, duvidou:
- “... mas isso não é nome de filme?! Fellini, Bergman, Goddard, coisa parecida?! Vai ver é chanchada da Atlântida, da Vera Cruz, ou um filme pornô...”
Insistentes, os suplicantes rogavam atenção de todos, e exibiam a bazófia, tudo em meio ao alarido típico das turbas suburbanas. E clamavam... Clamavam em nome de Deus, em nome da liberdade, em nome da facilidade.
Quão úteis todos eles, eu pensei. Como é bom viver plena democracia, concordei. Que felicidade tropicana, exclamei. Tenho assim assegurado o meu inalienável direito de ir e vir, ainda que seja da terra para o céu (ou seria o contrário?); não mais serei um escravo da miséria, pois que já é chegada a hora da minha tão sonhada emancipação econômica, na final derrocada da opulência alheia; que bom poder ser consumidor em potencial de bugigangas utilitárias!
Nem Fellini, nem Bergman, nem Goddard... eu quero é Mazzaropi! Sou anarquista italiano tropical, e salada é meu favorito hino nacional. Progredi sempre na desordem, sob a luz néon das estrelas do Cruzeiro do Sul; estive no sertão de Canudos, lutando ao lado do monarquista Conselheiro, e sobrevivi; fui o último cangaceiro a procurar, de lampião na mão, um homem honesto no sol do agreste; proclamei a República Juliana no outubro bolchevique, perseguido e foragido com Anita e Garibaldi.
Eu quero ir pro céu! Eu quero ser socialista! Eu quero comprar!!!
Acima de tudo, eu quero ter o imenso prazer de ser um outro artista a discursar intermináveis blás-blás blás nos ouvidos moucos de tantos quantos crêem. E Tomé nem precisa ver, porque nem santo precisa ser; pode ser (é preferível ser) apenas de Sousa, primeiro e último governador-geral do meu Brasil particular. Assim, eu vou ser um Caramuru-sancho-pança, colonizando as formidáveis metrópoles de urbanizadas favelas, espraiadas no Atlântico, guarnecidas nas serras do Tordesilhas.
Eu também serei missionário: vou picar inhame e aipim, picar cana cubana na goela dos loucos de todos os gêneros.
Eu ainda fundarei um sindicato e clamarei justiça social e máquina de lavar roupa para todos!
Comprarei um canal de televisão, e venderei o paraíso em trinta e seis suaves prestações, sem intervalos comerciais para não prejudicar a quimera dos meus parabólicos e incondicionáveis fãs.
Vou virar salada tropical!
(Marcus Moreira Machado)
SÁBADO, 2 DE JANEIRO DE 2010: TREMORES
Vivo toda a minha existência num único instante,
como possível fosse matar todas as paixões à primeira vista.
E, irriquieto, estremeço, convulso, num frêmito de quem agoniza
em meio à ansiedade puerperal.
Nesse instante, aprendo o mundo que me apreende,
porque dele depende o destino que gera os meus temores.
Dores de quem desconhece as dimensões...
e nelas navega às cegas, não procurando, não encontrando...
Navegando, só.
Onde estão os deuses do meu universo?!
Perversos!?
Não.
Incertos.
(Marcus Moreira Machado)
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