Nas discussões de políticas públicas, já é hoje inadiável o debate sobre uma escola que, no seu dia-a-dia, não educa democraticamente, mesmo empenhada em ministrar aulas temáticas com referências à ‘civilidade’ e à ‘urbanidade’. Não se aprende a ser democrático em cursos sobre a democracia; aprende- se a ser democrático em famílias que admitem pais e filhos não-convencionais, em escolas onde são assumidas a dissidência e a diferença como riqueza, com meios de comunicação capazes de dar, verdadeiramente, a palavra aos cidadãos. Essa realidade produz uma defasagem muito grande entre o modelo de comunicação paradigmático fora da escola, na sociedade consumista de comunicação, e o padrão comunicativo ainda hegemônico, no qual se baseia o saber escolar.
Qual seria, então, a reação do sistema educativo a esta experiência cotidiana da defasagem? Ou, em outras palavras, qual é a reação do sistema educativo escolar ao fosso cada vez maior entre a cultura apregoada por professores e a cultura e sensibilidade apreendidas pelos alunos? Este é um problema não enfrentado sequer pela própria Unesco. A instituição, em boa quantidade de seu acervo documental, mostra a míope visão prevalente da mera instrumentalidade: ainda usar os meios televisivos com o objetivo de “facilitar” a mais gente poder estudar; porém, estudar sempre a mesma coisa, ou seja, permitir, por exemplo, aos alunos verem uma ameba numa tela gigantesca.
Trata-se aqui de uma análise caricatural, mas, é fato, muitos dos documentos da Unesco perpetuam uma concepção incapaz de enfrentar os desafios culturais do ecossistema comunicativo ao sistema educativo em seu conjunto. Por isso, as escolas continuam vendo nesses meios unicamente uma possibilidade de ilustrar o continuísmo repassado por professores, uma forma menos aborrecida de “ensinar” a lição, de amenizar algumas jornadas de trabalho, presas da inércia mais insuportável. O comportamento preservado na escola e no sistema educativo leva ao desconhecimento ou ao simulacro, de maneira a evitar o confronto com o cerne do problema, presente no embate apresentado por um ecossistema comunicativo, do qual emerge outra cultura, outro modo de ver e ler, de aprender e de conhecer.
Os gestos mantenedores, conservadores, se limitam a identificar, no livro, o melhor do modelo pedagógico tradicional, reprovando a era audiovisual, mal interpretada como contextos de frivolidade, de alienação, de manipulação. Quisera o livro fosse um meio de reflexão e de argumentação, mas, infelizmente, não o é. Pesquisas sobre hábitos de leitura e usos sociais da televisão demonstram o quanto a imensa maioria das pessoas, de todas as classes sociais, identifica ‘livro’ com ‘dever escolar’. Desta maneira, uma vez terminado o período escolar desses indivíduos, o livro perderia a sua função. As escolas não estão sendo um espaço no qual a leitura seja um meio de criatividade e de prazer, mas sim o espaço no qual leitura e escrita associam-se a uma tarefa obrigatória e enfadonha; castradora, inclusive.
Confundindo qualquer manifestação de estilo próprio com anormalidade ou com plágio, os professores sentem-se no direito de reprimir a criatividade. É o efeito dos hábitos e da inércia do ensino legitimado pelo modelo imperante de comunicação escolar. Nos segmentos populares, o aprendizado da leitura, em vez de enriquecer, está empobrecendo o vocabulário das crianças, pois, ao tentar falar como se escreve, as crianças perdem grande parte da riqueza do seu mundo oral, inclusive sua espontaneidade narrativa.
Ou seja, há um processo educativo ocupado em distanciar crianças e adolescentes da leitura e da escrita criativas, ignorando a existência de uma cultura da oralidade, detentora de idioma próprio, especialmente nas classes mais periféricas, distanciadas da mal denominada erudição. E isso não pode ser, de modo algum, confundido com analfabetismo. Essa é a outra cultura confrontando a da escola institucional, tão absurdamente desprovida de didáticas interativas, paralisada diante do contemporâneo complexo de meios midiáticos.
(Caos Markus)
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