Diferente das civilizações primitivas, onde as trocas e os contratos são estabelecidos através das prestações e contraprestações de presentes e regalos, a dádiva não circula em todas as instâncias da sociedade. No Estado e no mercado a dádiva atua de forma periférica, pois são segmentos da sociedade que postulam vínculos inscritos na lógica utilitarista, sendo a socialidade primária o espaço natural de circulação da dádiva, inaugurando e mantendo as relações de pessoa a pessoa, e garantindo, assim, a existência social. Entre as relações sociais primárias (família, amigos, afeto) existe o desejo entre si mesmas, enquanto nas relações sociais secundárias se busca um meio para se atingir determinada finalidade.
A dádiva constitui elemento inerente a qualquer formação social e é tratada como pressuposto para formação da coletividade. Sua natureza é estabelecer relações através do circuito composto pelos momentos de dar, receber e retribuir, podendo ser definida como 'qualquer prestação de bem ou de serviço, sem garantia de retorno, com vistas a criar, alimentar ou recriar os vínculos sociais entre as pessoas'.
Descrevendo de outra forma, a dádiva consiste em algo que é dado espontaneamente sejam objetos, palavras, gestos e, ao ser recebido, gera no beneficiário a sua necessidade moral e a vontade de retribuir. Essa contra-dádiva, ao ser praticada, se torna uma nova dádiva, que em outro momento será retribuída, e assim por diante. Desencadeia-se, então, um ciclo de circulação de dádivas, cujo efeito é o desenvolvimento de vínculos baseados na confiança.
O mercado e o Estado formam um sistema, assim também a dádiva forma um sistema, que é o sistema social como tal. É o sistema das relações sociais, na medida em que estas são irredutíveis às relações econômicas ou baseadas em contratos formais. Os seres humanos antes de ocuparem funções econômicas, políticas ou administrativas, são constituídos como pessoas no interior da sociedade primária.
Para que se possa pensar a dádiva como sistema, se faz necessário romper tanto com os entendimentos da prática humana proposta pelo utilitarismo, quanto com as diversas explicações que apresentam o ser humano como um egoísta natural e que o vêem como um ser obcecado pelo poder. Não se pode traduzir a dádiva apenas como interesse e equivalência contábil, centrando-se unicamente na motivação do recebimento. É preciso analisá-la enquanto interação, sem isolar quaisquer momentos que a constituem. Não é possível também imaginar que a realidade complexa e paradoxal (da qual é constituída a coletividade) possa ser explicada por uma perspectiva generalizada, supondo que o vínculo social preexista à ação dos sujeitos sociais. Para melhor se entender a natureza da ação coletiva, a teoria da dádiva é empregada como sistema de análise.
O desejo de dar é tão importante quanto o de receber. Logo, as trocas sociais são analisadas não a partir do que circula, mas sim, dos vínculos por onde circula. Ao lado da circulação dos bens e serviços no mercado, e da redistribuição sob a responsabilidade do Estado, há um imenso espaço socioeconômico onde eles circulam, por meio dos mecanismos da dádiva e da contra-dádiva.
As organizações cujas relações estão baseadas na dádiva são criadas livremente (a partir de iniciativas na sociedade, buscando principalmente o bem-estar social), e agrupadas através de organismos beneficentes e grupos de ajuda mútua. No primeiro caso, os serviços prestados são voluntários, sem retorno aparente, já que a retribuição está no próprio ato de dar. No segundo, as ações têm por base a reciprocidade, estabelecendo o ciclo da dádiva de dar, receber e retribuir, havendo uma responsabilidade de transmitir o que se recebe. Incluem-se, neste último caso, os empreendimentos da economia solidária.
As especificidades da economia solidária ou popular estão imbricadas no ciclo da dádiva, cuja essência é a reciprocidade da ação orientada pelo vínculo social. As relações entre os indivíduos formam uma rede de relacionamentos horizontais, de forma independente, por meio de vínculos de confiança, sobrepondo os interesses individuais.
A ação coletiva no âmbito da economia solidária está relacionada à reciprocidade entre as relações sociais, sobretudo os de confiança, estabelecidos no processo de trabalho.
Sob a ação da dádiva, a reciprocidade na perspectiva do ciclo em que o dar é tão importante que o receber. Este pensamento permite compreender a existência de outras maneiras de relação social que não somente aquelas fundamentadas na afetividade e no parentesco da socialidade primária, ou formadas a partir do mercado e do Estado, uma vez que no âmbito da economia solidária as relações entre estranhos não se valem de forma coercitiva ou material. Concluí-se que as relações se estabelecem por meio de uma reciprocidade voluntária que, fundamentada na solidariedade e confiança, pressupõe a autonomia individual sem romper com o coletivo.
Nos primórdios da economia estruturada em mercados, a criatividade dos operários reagiu à pobreza e ao desemprego com origem na difusão desregulamentada das máquinas-ferramentas e do motor a vapor no início do século XIX. As cooperativas surgiram por iniciativa dos operários na recuperação da atividade fonte da renda e como forma de autonomia econômica, aproveitando uma nova forma de produção e/ou distribuição. A igualdade e democracia se tornaram inspiração como modo de estruturação dos valores básicos do movimento operário, semelhante à forma engendrada pelo socialismo. O cooperativismo de produção e/ou distribuição, em sua conformação inicial pós-moderna na Inglaterra, aconteceu a partir dos sindicatos e através da busca pelo sufrágio universal.
A organização social que tem o viés da solidariedade, dádiva e reciprocidade não se coadunam com o binômio trabalho e posse dos meios de produção, que é à base de uma economia de mercado. A empresa formal tem investidores como proprietários, os que repassam o dinheiro para conseguir os meios de produção, e esta condição inata tem como finalidade a obtenção de lucro aos investidores, utilizando formas de obtenção de lucro crescente em relação ao que é investido. O poder de domínio e controle, na empresa formal, está concentrado nas mãos dos investidores ou de profissionais por eles contratados.
O capital e bens da empresa solidária são constituídos pelos participantes diretos dos que nela trabalham e apenas por esses indivíduos. As atividades, o capital e bens estão embricados, porque todos os que exercem suas atividades são proprietários da empresa alternativa, e não há proprietários que não trabalhem na empresa. A propriedade da empresa alternativa é distribuída igualmente entre todos os participantes, para que o poder de decisão seja dividido entre seus membros.
Empresas alternativas são, em geral, administradas pelos membros eleitos para a função, se pautando pelas orientações aprovadas em assembleias gerais ou, quando a organização cresce, em conselhos de membros eleitos por todos os participantes. Essas empresas são compostas basicamente por membros que participam na produção e/ou distribuição, apenas em aspectos secundários são seus proprietários. Talvez seja este o motivo da não maximização do lucro nas trocas que proporciona, mas tem na quantidade e qualidade de suas atividades a realização do trabalho social.
Quanto ao aspecto da renda, a empresa socioeconômica não tem a finalidade originária do lucro, até porque a receita não tem relação com a proporção participativa dos membros que a compõem. Esta organização associativa pode receber empréstimos dos próprios sócios ou de outros indivíduos que não fazem parte da organização associativa, assim como procuram pagar juros com índices menores que os praticados no mercado financeiro formal, aos credores internos ou externos. O que excede durante o ano, ou as sobras da organização tem sua destinação decidida pelos membros participantes. De um modo geral, uma parte se destina ao reinvestimento, podendo ficar disponível em um fundo comum, pertencente ao coletivo da organização associativa. Outra parte do excedente ou sobras também pode ser reinvestido ou acrescentar ao valor proporcional à participação de cada membro, que têm o direito de se apropriar deste valor quando não mais fizerem parte da organização associativa. Caso haja mais algum excedente ou sobras, será destinado a um fundo específico de educação, social, de cultura, ou de saúde entre outros, ou eventualmente à divisão entre os membros, através de critérios convencionados entre os mesmos.
(Caos Markus)
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