Contemporaneamente, muito em voga nos círculos intelectuais supostamente politizados, a expressão "cidadania" tem sido como que uma mais recente bandeira de luta, a conferir "status" de 'conscientizado' a todos quantos por ela se debatem. Essa visão ainda um tanto apaixonada dos heróis modernos, resquício, certamente, de outros tantos momentos de um vago "movimento revolucionário", sobejamente forjado na aquisição de valores estranhos à nossa cultura, mas propícios à propaganda de um universalismo político entendido por "inevitável", pauta pela participação direta das massa populares na construção de um eventual modelo de sociedade mais condizente com os seus anseios.
Ora, aqui, como em qualquer lugar do mundo, o ser humano rende-se ao fascínio próprio às novidades, sempre de impacto, no entanto bastante fugazes. A possibilidade de ser um co-partícipe do poder, organizando passeatas ou protestando por reforma agrária, tributaria ou por melhores salários, é uma "ilusão" que faz tão bem ao ego quanto ser a testemunha ocular de uma formidável colisão de veículos em via pública. Afinal, quem não quer poder sair por aí dizendo que a sua existência tem um grande significado, mesmo que essa valoração esteja nos limites do tacanho!
É algo como: "não fotografou, dançou!". Assim, como que a esconder as mais particulares frustrações, o registro da presença individual seria uma maneira de aliviar tensões de outra grandeza, não afeitas necessariamente ao campo político ou à área social; algo, enfim, mais ao gosto da psicologia.
As campanhas, pois, finalizando o nosso resgate para uma terra prometida aqui e agora, "redescobrindo" os cidadãos que somos, encerram, via de regra, muito mais que a "cidadania" em si. Senão, vejamos a origem, o nascimento desses, títulos: nos primeiros dias do mês de outubro de 1774, Beaumarchais, o autor de "O casamento de Fígaro", tendo um processo com um conselheiro, pleiteou em pessoa sua causa ante o Parlamento, apelando pela primeira vez para a opinião pública; e disse ele - "Sou um cidadão, isto é, nem economista, nem abade, nem cortesão, nem favorito, nem nada que se possa chamar "poder"… Sou um cidadão, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de desconhecido, de inaudito, em França. Sou um cidadão, isto é, o que os senhores deviam ser desde há duzentos anos atrás e hão de ser dentro de vinte, talvez…"
A defesa de Beaumarchais obteve grande êxito. E, a partir desse momento, o título de cidadão foi adotado por todos aqueles que se consideraram espíritos liberais.
Verifica-se, destarte, que cidadania não é representação do "poder", como pretendem agora os postulantes de uma nova e incerta ordem. Exige-se hoje um comprometimento avesso ao significado imediato daquele vocábulo. E, posto dessa forma, como algo novo, ou melhor, como uma novidade, impõe aos incautos uma regra de conduta fundamentada mais no engajamento que na liberalidade.
No mínimo quer-se exclusividade na liderança, com a frágil hipótese da anuência dos liderados, reconhecida na ínfima parcela de poder que esses últimos supõem exercer. No entanto, convém lembrar que outros heróis, de mais ampla magnitude, também privilegiaram o contraditório como estratégia de poder. Assim, o mais célebre herói chinês, Fohi, uma criatura semi-mitológica, ao mesmo tempo em que teria sido o primeiro legislador da sociedade humana, pioneiro também na composição de um calendário e na fundação de um governo com empregados públicos na administração do país e direção do povo, ensinara o tráfico de homens.
Doutrinas alternam-se no tempo e no espaço; o que já foi símbolo da garantia das liberdades individuais, hoje é execrado como marca do retrocesso; o positivismo revolucionário de ontem, um ideal de boa medida para os teóricos da República no Brasil, homens que ocupariam posições de relevo na administração pública do país, após ter encontrado em Spencer um ampliador e em Littré o seu reformador, sucumbiu, limitado a pequeno grupo de estudioso, perdendo a força dinâmica da proposta inicial, quando, então, propugnava pelo aniquilamento da Teologia e destruição da Metafísica, enfatizando a filosofia aplicada aos fenômenos naturais.
Também hoje, o festejo "socialismo real" do início do século, é soterrado sob as pás do Muro de Berlin, ou deriva à bordo de improvisadas naus arquitetadas sobre câmara de ar, procurando, desesperadamente, uma nova rota, dessa vez para o destino menos incerto do capitalismo.
O Liberalismo de outrora é modernamente alcunhado "neoliberalismo", e, assim, interpretado como severa ameaça ao cidadão e aos seus direitos fundamentais. Porém, "liberal" já foi expressão daquele que, tendo idéias avançadas em Sociologia, era favorável à liberdade política e civil. Visto agora apenas sob a ótica da Economia, passou a traduzir-se em não confirmada versão da exploração dos pobres pelos ricos.
Preferível, pela inerente sensatez, considerar, então, a universalidade daquele que, tendo sido consagrado como dramaturgo, o parisiense Beaumarchais, construiu de fato para com o progresso de toda a humanidade, enxergando-a além das fronteiras do poder político ou religioso, para devolver a cada um aquilo que cada um deve procurar em si mesmo - a sua liberdade. (Marcus Moreira Machado)
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