Admitimos, desde Darwin, que somos filhos de primatas,
embora não nos consideremos primatas. Convencemo-nos de que, descendentes da
árvore genealógica dos trópicos onde vivia o nosso antepassado, dela escapamos
para sempre, a fim de construirmos, fora da natureza, o reino independente da
cultura.
O nosso destino é, evidentemente, excepcional em relação
aos animais, incluindo os primatas que domesticamos, reduzimos, reprimimos e
confinamos em jaulas ou em reservas. Fomos nós que edificamos cidades de pedra
e de aço, inventamos máquinas, criamos poemas e sinfonias, navegamos no espaço.
Como não acreditaríamos, pois, que, embora vindos da natureza, tenhamos nos
tornado seres extranaturais e sobrenaturais?
Há muito, pensamos contra a natureza, convictos de nos
ser atribuída a missão de dominá-la, subjugá-la, e conquistá-la.
As religiões em geral, apregoam a existência de um homem
cuja morte sobrenatural foge ao destino comum das criaturas vivas. O humanismo
é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural desvia-se desse destino: homem
dotado de supremacia num mundo de objetos e soberano num mundo de sujeitos.
Por outro lado, embora todos os homens provenham da mesma
espécie, “homo-sapiens”, esse traço comum da natureza continua a ser negado ao
ser humano pelo humano, não reconhecendo o seu semelhante no estrangeiro, ou
monopolizando a plena identidade e as íntegras características de homem,
fazendo distinção não mais exclusivamente entre si mesmos e os demais primatas,
porém, cometendo o absurdo de determinar “diferenças” entre os seus pares. E,
atualmente, se fomos obrigados a admitir que todos os homens são homens,
apressamo-nos à excluir aqueles a quem chamamos “desumanos”.
Contudo, o tema da ‘natureza humana’ jamais deixou de
suscitar interrogações, porque só se descobriu o desconhecido, a incerteza, a
contradição, o erro. Nunca alimentou um ‘conhecimento’, mas sim a dúvida sobre
o ‘conhecimento’. Quando a natureza humana emergiu como plenitude, virtude,
bondade, isso ocorreu para nos considerarmos imediatamente exilados e para,
deplorando-a como um paraíso irremediavelmente perdido. Ato contínuo, não foi
preciso muito esforço até a descoberta de que esse paraíso era tão imaginário
quanto o outro.
A ideia da natureza humana ainda haveria de perder o
núcleo, tornar-se protoplasma sem forma definida, quando se adquiriu
consciência da evolução histórica e da diversidade das civilizações. Afinal,se
os homens são tão diferentes no espaço e no tempo, se transformam-se de acordo
com as sociedades, então a natureza humana não passa de uma matéria-prima
maleável, só adquire forma por influência da cultura ou da história. Além
disso, na medida em que a ideia de natureza humana foi imobilizada pelo
conservadorismo, a fim de ser mobilizada contra a transformação social, a
ideologia do progresso chegou à conclusão: para haver transformação no homem,
este não podia ter natureza humana. Deste modo, esvaziada por todos os lados de
virtudes, de riqueza, de dinamismo, a natureza humana surge como um resíduo
amorfo, inerte, monótono, qual seja, aquilo de que o homem se desfez, e não
aquilo que o constitui.
Entretanto, não é certo que a natureza comporta um
princípio de variedade testemunhado pelos milhões de espécies vivas? Não
implica num princípio de transformação? Não comporta em si própria a mesma
evolução, no caminho percorrido até homem? Seria a natureza humana desprovida
de qualidades biológicas?
Surgiram, sim, tentativas teóricas voltadas a firmar a
ciência do homem sobre uma base natural. Karl Marx colocava no centro da
antropologia não o ‘homem social’ e ‘cultural’, mas o “homem genérico”. Longe
de opor ‘natureza’ e ‘homem’, Marx afirmava ser a natureza o objeto imediato da
ciência ocupada no estudo do homem, considerando ser ‘natureza’ o primeiro objeto do homem,
qual seja, o próprio homem
Engels igualmente esforçou-se
por integrar o homem na “dialética da natureza”.
Esses movimentos, todavia, refluíram. E a antropologia da
primeira metade do século XX lançou-se exatamente no sentido contrário,
repudiando qualquer ligação com o “naturalismo”. O espírito humano e a
sociedade humana, únicos na natureza, deveriam encontrar a sua inteligibilidade
não só em si próprios, mas também como antítese de um universo biológico sem
espírito e sem sociedade. Deste modo, o mito humanista do homem sobrenatural
reconstituiu-se no próprio seio da antropologia, e a oposição natureza/ cultura
assumiu a forma de paradigma, quer dizer, de modelo conceitual a nortear todos
os seus discursos.
No entanto, esta dualidade ‘homem/animal,
cultura/natureza’, esbarra contra toda a evidência: o homem não é constituído
por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e outra psicossocial, não
transpôs qualquer imaginada separação entre sua parte humana e sua parte
animal; é evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica. E
fosse concebível compreender o homem somente como ser biológico, não como
produtor, mas como matéria-prima da qual se modela a cultura, nesse caso, de
onde teria se originado a cultura? Se o homem vive na cultura, mas trazendo em
si a natureza, como pode ser simultaneamente antinatural e natural? Como se
pode explicar isso a partir de uma teoria limitada a se referir ao seu aspecto
antinatural?
A antropologia absteve-se de abordar estas questões, e
rejeitou o inexplicável, a pretexto de ser insignificante, até que o problema
desapareça do campo da percepção. Contudo, mais recentemente, a situação
modificou-se radicalmente, apesar de isso ainda ser muitas vezes pouco
transparente. Deixou de existir a tal fronteira pretensamente inexpugnável
entre os três domínios. Surgiram fissuras em cada paradigma isolado, lacunas essas
ao mesmo tempo representando aberturas a os outros domínios até então interditos,
e pelos quais, agora se operam as primeiras conexões e emergências teóricas
novas.
A etologia (estudo dos comportamentos instintivos),
abrindo a biologia para “cima”, começou a ter sucesso nos últimos anos. Porém,
foi preciso muito tempo desde o trabalho solitário de pioneiros, observando os
comportamentos animais no seu meio natural, até se atingir um desenvolvimento
importante. E enquanto a ecologia modifica a ideia de natureza, a etologia
modifica a ideia de animal. Até então, o comportamento animal parecia regido
quer por reações automáticas ou reflexos, quer por impulsões automáticas ou
“instintos”, simultaneamente cegos e extralúcidos, com função de assegurar a necessidade
de salvaguarda da sobrevivência e da reprodução do organismo.
Ora, as primeiras descobertas etológicas indicam o
comportamento animal simultaneamente organizado e organizador. Em primeiro
lugar, surgem as noções de comunicação e de território. Os animais comunicam,
exprimem-se de uma forma recebida como mensagem, e interpretam como mensagens
determinados comportamentos específicos.
Desta forma, as comunicações animais já abrangem um campo
semiológico complexo, a uma grande variedade de relações interindividuais:
submissão, intimidação, acolhimento, rejeição, eleição, amizade. Além disso,
são indicadores de fenômenos organizacionais básicos, como a regulação
demográfica, o arranjo e a proteção do território.
A riqueza das comunicações realizadas por meio de sinais,
de símbolos, de ritos, é precisamente função da complexidade e da
multiplicidade das relações sociais. Nas aves, e sobretudo nos mamíferos, a
grande diversidade de indivíduo para indivíduo determina e aumenta essa
complexidade.
Tudo isto significa que a sociedade, concebida como
organização complexa de indivíduos diversos, baseada ao mesmo tempo na
competição e na solidariedade, comportando um sistema de comunicações rico, é
um fenômeno extremamente disseminado na natureza.
De qualquer modo, a substituição das noções de hordas,
bandos, colônias, pela de sociedade torna-se necessária quando se descobre a
organização complexa desses grupos. Também neste caso é em volta do conceito de
organização que emerge uma nova complexidade biossociológica, e é em volta do
conceito de complexidade que emerge a fisionomia da organização social.
Hoje, já é possível conceber que a sociedade é uma das
formas fundamentais mais amplamente difundida, desenvolvida de uma maneira
muito desigual, contudo muito variada, da auto-organização dos sistemas vivos.
E, assim, a sociedade humana surge como uma variante e um desenvolvimento
prodigioso do fenômeno social natural. A sociologia, uma ciência humana, perde
então o seu isolamento e passa a ser o máximo reconhecimento da sociologia
geral.
A sociedade e a
individualidade surgem-nos, assim, como duas realidades simultaneamente
complementares e antagonistas. A sociedade, ao mesmo tempo em que maltrata a
individualidade, impondo-lhe os seus limites e as suas coações, oferece-lhe
estruturas que lhe permitem exprimir-se. Utiliza, para a sua variedade, a
diversidade individual, que, caso contrário, se dispersaria na natureza; a
variedade individual utiliza a variedade social para tentar expandir-se.
Nesta dupla ruptura (do biologismo e do antropologismo) e
dupla abertura (do conceito de vida e do conceito de homem) tem uma importância
capital. A abertura da noção de homem sobre a vida não é unicamente necessária
à ciência do homem. É também
indispensável ao desenvolvimento da ciência da vida. A abertura da noção de
vida é, por si mesma, uma condição para a abertura e ao desenvolvimento da
ciência do homem. A insuficiência de uma e de outra tem inevitavelmente de
apelar para um ponto de vista teórico que possa, ao mesmo tempo, uni-Ias e
distingui-Ias, permitindo estimular o desenvolvimento de uma auto-organização e
de uma lógica da complexidade.
Por efeito, a questão da origem do homem e da cultura não
diz unicamente respeito a uma ignorância a ser eficazmente reduzida. Considera
uma curiosidade a satisfazer. É uma questão com um alcance teórico imenso,
múltiplo e geral, consolidando a interligação entre ‘natureza/cultura,
animal/homem’.
Afinal, ser primata não é defeito. Agir como um símio e
se autodenominar ‘homem’, isto sim, é somente frase de efeito, um sofisma
reducionista da espécie humana.
(Caos Markus)
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