Imaginei-me nim filme de ficção científica, onde um olho eletrônico, conectado a uma rede de computadores, todos em compartilhamento com os PCs dos supermercados, sondava os meus ganhos e a minha contabilidade. A cada vez que eu obtinha um maior rendimento financeiro, o tal olho me denunciava aos empresários e, de imediato, eles majoravam os preços, obrigando-me a um frequente maior esforço, a redobrado trabalho. E então, verdadeira bola de neve, eu envolvido em intrincada trama de especuladores, empenhados na minha transformação em consumidor biônico, programado a, por impulsos elétricos, a gerar lucros espetculares, alijado do raciocínio, só condicionado ao consumo e ao trabalho, ao labor e aos gastos.
Legião de famintos, em meu devaneio, milhares de biônicos iguais a mim iniciavam estranha mutação, metamorfoseando-se em singulares espectros, consumidos, todos, num fausto banquete, servidos aos convivas em carrinhos de 'self-service'. Os comensais atingiam, então, o ponto alto das suas carreiras de exploradores, saboreando a carne já inumana de seus fregueses. Darwin fôra mal interpretado: os negociantes decidiram selecionar a própria espécie, eliminando-a.
Em meu delírio, não era mais possível qualquer realidade, porque as gôndolas de um hiper-mega-supermercado exibiam aos mutantes peças de inteira coxas, com fêmur e restos de tíbia à mostra. Garrafas pet indicavam a validade de estranho suco -um xarope esbranquiçado cheirando a fel, que, segundo a composição no rótulo, era mistura de leucorréia com hemoglobinúria, pigmentada e aromatizada com bilirrubina. Seções de 'importados' faziam promoção de carne estrangeira enlatada com matéria-prima selecionada.
Não tive dúvidas: o consenso da ignorância triunfara. No lugar da "Lei de Gerson", vigorava norma exemplar da sobrevivência humana, também conhecida como a "Lei da Antroponarquia", projeto recém aprovado no parlamento, a fim de regular a extinção do excedente humano, que, exportado, revitalizava o câmbio -inovadora heterodoxia econômica e monetária.
O quê eu imaginei me pareceu tão verossímel que ainda agora me causa assombro.
Um novo governo proclamava a virtude de ter sido o único a resolver o angustiante problema da fome no país, através desse programa a que chamou "Fome Zerada".
O quê eu imaginei, depois de tudo isso, foi inimaginável. Mas tanto, tanto, que não ouso ir além dessa imaginação.(Marcus Moreira Machado)
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