Eu preciso saber o quê está acontecendo, se é que alguma coisa está mesmo acontecendo. Ouvi rumores. Boatos dão conta de que o Congresso foi tomado de assalto por 'tropas de elite'; comenta-se à boca pequena o confinamento do presidente em exílio ignorado. Estou com medo. Quero comprar cigarros mas não tenho um salvo-conduto. E se for verdade o toque de recolher, eu serei preso e interrogado como provável suspeito do levante, responsável pelo tentado golpe para desestabilizar o governo revolucionário do 'partido pela libertação do povo oprimido' -o temido "Estrela Cadente". Vizinhos sussurram, dizem que será suspensa por tempo indeterminado a venda de combustíveis, a fim de se evitar fabricação caseira de coquetéis molotóv. A minha correspondência está atrasada e receio dar algum telefonema (será, grampearam meu telefone?). Ainda tenho um resto de "louro-fino", posso enrolar o fumo. Mas, e o adoçante?! E o café?!! Pior: se eu não conseguir comprar o jornal, como ficarei sabendo o quê acontece lá fora?!!! Rádio, nem pensar. Desconfio que as emissoras estão tocando funk por ordem do 'comando revolucionário'. Bateram à porta, não atendi. Ouço sirenes a todo instante, e creio que aquele estampido era o de uma bala perdida, mesmo parecendo som de escapamento "envenenado". É melhor eu queimar meus livros. Porei fogo nos poemas de Florbela Espanca e nas receitas de Dona Benta. Foi desse jeito, na última vez: um amigo meu "desapareceu" quando assistia ao filme (agora em DVD!) de Costa Gravas, "Missing"). Ou era "Lost", o seriado!? Não me lembro. A casa dele fôra revistada, apreenderam um exemplar raríssimo de Flash Gordon, personagem de comprovada subversão, disseram os agentes federais; patrocinador de "aventuras delirantes, um ópio do povo", confirmou a guarda nacional. Por isso a minha cautela: vai que descobrem, nos ingredientes do 'strogonof ', no livro de culinária, indícios de perigosa composição de reacionarismo burguês...! A minha agenda vai para a fogo também. Vai que descobrem que tenho irmãos... Será um passo para identificarem em minha árvore genealógica o parentesco com Fernão Dias... E pronto: me levarão em camisa-de-força, pela loucura descendente. Até porque, afinal, foram os bandeirantes, paulistas, os responsáveis pela Guerra dos Emboabas! Não correrei esse risco.
Deixarei crescer barba e cabelos, tingirei fio por fio, vestirei macacão de metalúrgico; fingirei ser homem do povo, todo sujo de graxa e fedendo como todo bom proletário deve feder, se quiser cair nas graças da emancipação da classe operária.
Porcaria! Como é difícil fazer cara de revolucionário!! Dá uma canseira danada! Mas estou decidido: vou delatar todo mundo, me filiar no "Estrela Cadente", pelo tempo que ele permanecer no poder.
E se ele cair? Simples: direi que sofri lavagem cerebral, porque antes eu só ouvia Dvorack e sempre fui adepto ferrenho (ou ferrado!?) do neoliberalismo.
Acreditarão? Sim, acreditarão. Crédito, crediário e crença, para eles, é tudo a mesma coisa!(Marcus Moreira Machado)
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