Nas sociedades pluralistas, constata-se que os diversos valores sugestivos de boa qualidade de vida conflitam-se, quer internamente quer externamente. A discussão interna percebe-se através de princípios que se opõem dentro de um mesmo indivíduo, ou seja, os conceitos próprios, específicos de uma pessoa confrontam-se entre si, possibilitando situações de antagônicas proposições morais, restringindo, pela dificuldade, as suas escolhas. O conflito externo, também referido como desacordo moral, é objeto de acurada observação por muitos dos dedicados a investigar essa questão.
Se o pluralismo de valores for verdadeiro, impõem-se no mínimo três premissas para lidar com o desacordo moral:
Com efeito, há os valores fundamentais, dos quais as pessoas e os grupos estão pouco dispostos a abdicar. O conflito é permanente: na realidade, de um acordo moral somente se vislumbra um equilíbrio precário. Necessárias, pois, as revisões e reformulações constantes, no intuito de estabilizar o quanto mais esse acordo, adequando-o às exigências das partes adversas.
O desacordo moral mobiliza elementos em colisões frequentes, jamais alcançando alguma síntese dos característicos da complexidade humana: interesses pessoais, racionalidade, emoções, valores éticos, altruísmo, egoísmo, segurança, temor, livre-arbítrio, autonomia etc., etc.
Das premissas acima, imediata consequência é a inviabilidade de se atingir um acordo moral de extremo a extremo. A harmonia atemporal não está próxima do ser humano. A esperança de que a humanidade atingisse uma harmonia perfeita sempre esteve relacionada a ideais utópicos. Tomás Morus, em 'A Utopia', formulou algumas noções de tal desejo, como, por exemplo, a de que o bem público, situado acima do privado, é referência de mensuração de todos os valores, conformando as diretrizes de uma única concepção de bem. Para Morus nada é privado; o bem público, exclusivamente, deve ser considerado. Ao indivíduo, então, cabe o esforço de colocar (em exercício de impessoalidade) de lado os interesses particulares, em prol de um 'bem maior'. Na busca de consenso, a tentativa de se empreender esse esforço é louvável. O problema surge quando, incorrendo-se no unitarismo das acepções, exige-se que as mensurações, as medidas individuais sejam solapadas pelo máxima influência do pretexto estatal.
Utopia ruim, há uma só: a defesa da 'concepção dinâmica da unidade de forças', oriundas de múltiplos segmentos, e reduzidas a fenômeno do movimento social. Essa é utopia marcada pelo desprezo à multiplicidade de 'valores fundamentais', dirigida à padronização, por julgá-la, assim, de mais fácil controle.
É utopia a desconsiderar, ainda, o 'conflito permanente', baseada no equívoco de hipotética possibilidade, a de atrair, pela dominação, ideais divergentes, convergindo, a qualquer custo, opiniões e atitudes díspares.
A má utopia resulta desumana, porque se mostra insensível à complexidade dos homens, consistente em um traço excessivamente humano que, longe de ser lamentável sintoma de egoísmo, má-fé ou irracionalidade, torna a vida mais interessante.
O pluralista discorda do demasiado acento conferido pelo pensamento utópico ao bem público e ao Estado. O valor público é um valor entre outros. O consenso moral, desse modo, envolve dois domínios, cujos limites são imprecisos: o da impessoalidade e o dos interesses das pessoas e dos povos. O equilíbrio entre ambos, embora difícil, é meta a ser perseguida. A impessoalidade está relacionada ao uso da razão teórica fundada no bem público e, também, ao da razão prática que molda as ações em função das normas públicas.
A pessoalidade mobiliza valores relacionados a interesses particulares, relacionados à cultura e compartilhados por determinados segmentos sociais.
Uma resposta estritamente racional, para uma situação de desavença moral, demandará, certamente, ininteligível empreendimento ao agente. Este, por seu turno, talvez sinta-se desmotivado a agir em conformidade com aquilo que se lhe é exigido pela razão. Isso não significa, contudo, descartar a resposta racional diante do primeiro obstáculo. Exercer a racionalidade é moldar as justificativas plausíveis dentro da situação conflituosa.
Ultrapassado o limite da plausibilidade, não sendo então convincentes as justificativas, a procura do acordo pode se converter em uma violência moral.
A pessoalidade é um exercício mais simples, porque menos abstrata. Todavia, no mundo os princípios não estão absolutamente protegidos; são vulneráveis e se confrontam, a ponto de suscitar por inalienável exigência que as inclinações pessoais sejam impedidas em sua pretensão de se tornar regra comum .Mas, é sabido, nem todas as inclinações pessoais são facilmente resolvidas por meio de procedimentos simples. Às teorias políticas, se reais, caber perceber o poder destrutivo dos valores pessoais.
A utopia verdadeira, por outro vértice, leva a sério o pluralismo de princípios, a fim de conciliar interesses individuais com as diversas noções do bem. .
Motivos exclusivamente éticos não são, comumente, suficientes para se obter o consenso. Os indivíduos não pretendem desfigurar suas "razões" mais arraigadas, mas não dificilmente estarão dispostos a transigir em determinados aspectos, caso a contemporização conduza a um resultado admissível.
No 'conflito permanente', ganhos e perdas precisam de um ponto de equilíbrio, tanto ao nível dos agentes discordantes, como na macro dimensão, a do dos arranjos políticos.
Ora, um arranjo político somente é admissível quando se mostra justificável para os cidadãos que dele participam.
A idéia de utopia remete a uma conjunção entre a sua 'função', o seu 'objetivo' e a sua 'necessidade', onde as várias noções do 'bem' e do 'interesse público' agem pela aplicação da justiça. Ser utópico não é supor que essa associação possa ser perfeitamente harmônica, possibilidade a ser descartada, face a decorrência da incomensurabilidade dos valores.
O utópico enxerga o problema do desacordo permanente enquanto característica humana.
(Caos Markus)
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