A multidão circula pelas ruas, disputando espaço com automóveis, ônibus e ciclistas. Multidão e veículos não são apenas um grotesco movimento; fazem parte de uma cena 'impressionista', a ocultar verdadeiras formas, encerrando conteúdo não revelado. Não há transparência; nesse 'instantâneo', todos só fazem terminar mais um dia, adiar a paz, na mais exata tradução de vida circular e confinada. E com grande expectativa, é o quê também esperam do futuro.
Como em Edgar Allan Pöe, há segredos que não se deixam revelar. Homem e chusma se confundem em surpreendente movimento, no medo exacerbado do 'estar só'. É como se o amanhã não devesse existir. Então, o alarido, o som das buzinas, as luzes de neon, placas, cartazes. O mundo em liquidação. Tudo como se fosse possível afugentar o martírio do 'presente', ou um 'futuro' imediato. Por isso, o homem é bicho enjaulado em tudo o que ficou como pretérito. Qual um condenado, ele só se permite reviver fatos e sentimentos -um inútil resgate de si próprio. Porque o passado é ameaça para quem quer escapar da vida; ele invade a alma e deixa a sensação de que a vida 'não é', 'não foi' e jamais 'será'. E tudo é feito no mesmo momento em que ela "é ânsia por si mesma".
Sem a esperança daquilo que 'não é', 'não existe', porém, que pode 'vir a ser', perde-se a força do sonho transformador. Em seu lugar, o realismo "responsável" que nada constrói; antes, é a inegável estagnação, reacionarismo demagógico. Destituída de fatores objetivos, a sociedade, assim organizada, evita buscar elementos mediadores assecuratórios de futura existência, hoje ainda impossível, pois não pretendida nem planejada. Então, teme-se a morte. Contudo, não é outra coisa o que se pratica. Não se admitindo na experiência da plenitude, o homem civilizado prefere a morte adiada, cultuando-a como a um deus que aplacará o fantástico e absurdo da imensurável existênca humana; confessa o seu medo, por desconhecida a morte. Todavia, parceiro dela, não admite o seu terror à vida, face à fragilidade que lhe é inerente. Porque, enfim, a morte é vigorosa, iminente e fatal; a vida, uma formidável promessa, nunca cumprida, sempre esquecida.(Marcus Moreira Machado)
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