REMETENTE e DESTINATÁRIO alternam-se em TESES e ANTÍTESES. O ANTAGONISMO das CONTRADITAS alçando vôo à INTANGÍVEL verdade.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
TERÇA-FEIRA, 5 DE JANEIRO DE 2010: "LINHA DO HORIZONTE"
Preciso saber o que está acontecendo, se é que alguma coisa realmente está acontecendo. Ouvi rumores; boatos dão conta de que o Congresso foi tomado de assalto por tropas de elite (comenta-se à boca pequena o confinamento do Presidente em exílio ainda desconhecido). Estou com medo; quero comprar cigarros, mas não tenho um salvo-conduto, e, se for verdade o toque de recolher, serei imediatamente preso e interrogado como suspeito provável do levante, responsável pelo golpe que tentou desestabilizar o governo revolucionário do partido pela libertação do povo oprimido - o temido “Estrela Cadente”. Vizinhos sussurram: dizem que será suspensa, por tempo indeterminado, a venda de combustíveis, pois quer-se evitar a fabricação caseira de coquetéis molotóv. Minha correspondência está atrasada e receio dar algum telefonema (estará grampeado o meu telefone?. Ainda tenho “louro-fino” e posso enrolar o fumo, mas e o adoçante, mas e o adoçante?! e o café?! Pior, se eu não conseguir comprar o jornal, como ficarei sabendo o que acontece lá fora?! Rádio nem pensar! Desconfio que as emissoras estão tocando “funk” por determinação do comando revolucionário; até a “Voz da América” só toca Michael Jackson e Madona (por que não instalei a antena parabólica?!!). Bateram à porta e não atendi; ouço sirenes a todo instante e creio que aquele estampido era o de uma bala perdida, mesmo parecendo com o som de escapamento “envenenado”. É melhor eu queimar os meus livros... queimarei os poemas de Drumond e as receitas de Dona Benta (foi assim da última vez, um meu amigo desapareceu quando assistia um filme de Costa Gravas, “Missing”, se não me engano; a casa dele fora revistada e apreendido em exemplar raríssimo do “Flash Gordon”, um personagem de subversão comprovada, segundo a polícia secreta, patrocinador de aventuras delirantes, um ópio do povo); vai que descobrem nos ingredientes do strogonoff a perigosa composição do reacionarismo burguês! Minha agenda também vai para o fogo - se descobrem quem é o meu irmão vão saber que tenho uma mãe, um passo para identificarem minha árvore genealógica o parentesco com o bandeirante Fernão Dias... e pronto, estarei capitulado! Afinal, foram os bandeirantes paulistas os responsáveis pela Guerra dos Emboabas; não pretendo correr esse risco.
Deixarei crescer a barba, pintarei os meus cabelos e vestirei macacão de metalúrgico; fingirei ser um homem do povo, todo sujo de graxa e fedendo como todo bom proletário deve feder para cair nas graças da emancipação da classe operária (preciso comprar um livro vermelho do Mao Tsé-Tung, “A prática” talvez; desencavar num sebo o “Literatura e Revolução” de Leon Trotsky, Leo Hubberman nem pensar - “História da Riqueza do Homem” é coisa de sociólogo, vão dizer, e o momento exige o rompimento com o passado, na aurora de um novo porvir).
Porcaria! como é difícil fazer cara de revolucionário, dá uma canseira danada. Vou me filiar no “Estrela Cadente”, em meteórica trajetória de iniciado em movimentos populares; quero assegurar o futuro dos meus filhos no novo governo. Pensando bem, para que pensar? Nunca foi a razão o verdadeiro império, o instinto tem guiado a raça humana muito mais que o raciocínio e a lógica.
Está decidido: vou delatar todo mundo, vou usar “botton” na camiseta, louvando o governo provisório, ainda que ele permaneça por mais tempo no poder. E se ele cair eu digo que sofri lavagem cerebral, que sempre ouvi Dvorak e li todos os artigos do Roberto Campos, e sou vidrado no neo-liberalismo. Vão acreditar? Claro que sim! Tanto a direita como a esquerda nunca precisariam de quem nelas acreditassem; o que nunca permitiram foi a sua ausência no poder, o que vale dizer que não precisam exatamente de seguidores, mas de quem não as atrapalhe, o que também vale dizer que se você tanto fez, tanto faz, é só fazer pose de quem não fêz mas que faz, e de que não faz, mas que fêz. Deu pra sacar?
Pronto, perdi o medo. Vou comprar cigarro ou charutos cubanos, tanto fez e tanto faz, eu quero mesmo é poder fumar; comprarei dietéticos, açúcar mascavo ou refinado, tanto fez e tanto faz, tomar café é hábito capitalista e socialista, ninguém vai desconfiar. Se perguntarem-me se eu penso, serei assim meio dúbio, meio reticente: “penso, logo desisto”. E, se confirmarem as notícias de estado de sítio, vou criar galinha caipira lá nos confins do meu estado interior, onde “o pensamento é uma coisa à toa, como é que a gente voa quando começava a pensar”. É voarei mais alto do que qualquer estrêla cadente, do que qualquer revolução decadente; e terei como guia a constelação do meu horizonte perdido, que ninguém quer porque ninguém vê.
(Marcus Moreira Machado)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário