Na China pós-revolução, já na década de 50, naquela que se convencionou denominar "proclamação do poder popular", pelos comunistas, havendo um só sistema de Corte, incluindo a Corte Militar, julgou-se, a princípio, dever ser eliminada a profissão de advogados. Segundo os revolucionários de então, seria a eliminação do sistema de advogados e não a eliminação dos advogados. Mas, em ressalva, preferiu-se distinguir os "advogados justos", procurando-se 'aproveitá-los ao máximo, na composição do novo governo'. À época, julgados os advogados 'que cometeram crimes', a formação do pessoal jurídico estabeleceu um corpo de conselheiros do povo, a quem cabia redigir documentos sobre demandas, fazer conferências em lugares públicos, 'esclarecendo o povo sobre os mais variados problemas jurídicos'.
Se os chineses cogitaram sobre extinguir a advocacia como profissão, tendo em vista a corrupção como característica primeira dos advogados daqueles tempos, não foram, contudo, os primeiros a atribuirem a esses profissionais qualidades indesejáveis no exercício da atividade que, segundo Fiot de La Manche, "sem armas... doma a força; sem força arrosta a violência; sem violência reduz o fausto e a prepotência à modéstia e ao temor..." Muito antes, pretendia Napoleão cortar a língua a todo advogado. Pois, à esquerda e à direita, disputando o apoio dos grupos burgueses, aristocráticos e populares, os grandes condutores do movimento revolucionário que instalou a modernidade - a Revolução Francesa -, tinham em Mirabeau, Marat, Robespierre, Saint Just, homens de reconhecido saber jurídico, com é especificamente o exemplos de Danton, advogado, um dos fundadores do Clube dos Cordeliers e figura ímpar na cultura contemporânea, pelo brilho com que defendeu os ideais revolucionários da cidadania plena.
Entretanto, entre nós brasileiros a advertência do mestre Ruy Barbosa, refletindo a possibilidade de instrumentalização da lei perante os embates entre ideologias que se defrontam, é de máxima conveniência. Reformador social, a um tempo homem de pensamento e ação, Ruy adverte: "Ora senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria... ... num país onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando".
A gravidade da consideração deste que foi no Brasil 'o primeiro a tratar da pedagogia como problema integral da cultura', a ponto de ter verificado que "... a chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta, e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria...", é tratada, ao que parece, com sarcasmo pela voz popular. Não por outro motivo o bacharelado em Direito é objeto de escárnio na trova zombeteira: "Querendo Jesus Cristo/Castigar os infiéis/Deu ao Irã gafanhotos/E ao Brasil bacharéis".
Se por advogado se entende aquele que intercede por alguém, patrocinando os interesses de outrem, e se por advogado temos como sinônimos, também, "padrinho" e "protetor", bastante razoável seria acatar-se a tese de que contemporaneamente a advocacia mais presente é a em causa própria, quando toda eloqüência não é mais que pretexto em dissimulada alicantina. Já o "Manual do Chicanista" glosava sobre a Ordem dos Advogado do Brasil, dizendo que tal instituição "existe para a defesa dos advogados", porém "dos advogados que estão de posse da Ordem". E acrescenta que não por mera coincidência são escolhidos para o preenchimento "quinto" constitucional (a inclusão de 'um quinto' de advogados e membros do Ministério Público na composição dos tribunais de justiça) exatamente, em geral, aqueles que fazem parte dos conselhos diretores das secções da OAB.
Obviamente, exceções existem. Contudo, a regra parece contrariar Brieux, para quem os advogados deveriam ser anjos, porque a advocacia era profissão acima das possibilidades humanas, e que "quando se vive dos sofrimentos humanos, deve-se estar acima deles". E se Voltaire pretendia ser advogado, por crer que fosse essa a mais bela carreira humana, certamente ele jamais gostaria de o ser no Brasil, subordinado a uma 'autarquia' que, mesmo sendo o 'órgão de seleção disciplinar e defesa da classe', conforme definição legal, desrespeita a observância efetiva daquela que tem o nosso país como um do seus signatários - a "Declaração Universal dos Direitos do Homem".
Pois, a Assembléia Geral das Nações Unidas, dentre elas o Brasil, procurando promover o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem, assegurou, em seu Artigo 19: "Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".
François Marie Arouet, inteligência viva e espírito rebelde, tendo pregado o primado da razão sobre o preconceito, não viveu, porém, o suficiente para conhecer a Constituição de 1791, na França, onde co-existiam duas espécies de cidadãos - os ativos e os passivos, tendo direito a voto os primeiros, porque podiam pagar um imposto equivalente ao valor de três dias de trabalho. E, para a sua sorte, o sarcástico "Voltaire", jamais conheceria, no Brasil, dois tipos de advogados - os que tudo podem falar, porque monopolizam a "defesa" dos interesses da classe, e os que a tudo têm que silenciar, subjugados em sua cidadania. (Marcus Moreira Machado)
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