A condição de ser estrangeiro afeta sobremaneira as culturas. Pode-se pensar em culturas que assimilam e acolhem o estrangeiro, respeitando sua diferença, não dissolvendo seu próprio ser na lógica cultural existente. Porém, pode-se pensar também em culturas em que os estrangeiros são "ameaçadores". São concebidos como os terroristas, os sem leis, os intrusos. São representados como os destruidores dos códigos culturais vigentes, devendo ser banidos deste universo. Ser estrangeiro é, em última análise, ocupar uma posição paradoxal na cultura, ou seja, objeto de fascínio, admiração, mas também de repulsa e aniquilamento.
Numa outra perspectiva, o 'estrangeiro' é concebido como uma condição humana. Então, somos estrangeiros para nós mesmos, em "demência" articulada a diferentes representações da própria loucura.
Em uma vivência caracterizada pela oscilação ou pela presença simultânea da sensação de familiaridade e estranheza, o 'não-familiar' expressa o efeito do recalque, correspondendo ao retorno do desejo inconsciente, que se apresenta ao sujeito como algo que lhe é, a um só tempo, estranho e familiar. A realidade parece dar razão à possibilidade da realização imediata do desejo.
A teorização de Freud em torno da vivência do estranho-familiar é possível porque em sua perspectiva o sujeito é dotado de inconsciente. Isso equivale dizer que o sujeito não é senhor de si mesmo. Ele é movido pela força do desejo, sendo este o responsável pelos caminhos tortuosos trilhados por cada pessoa.
As diferentes vivências humanas registradas na tenra infância e tornadas inconsciente, tendem a retornar à consciência por diferentes caminhos, a saber, através de atos falhos, sonhos, sintomas, etc. Elas retornam como sendo estranhos ao sujeito, como viessem de um lugar exterior ao mesmo.
O "sobrenatural" desalojado da exterioridade na qual o medo se fixa é integrado ao familiar- estranho, ou melhor, ao outro que é meu próprio inconsciente.
O sujeito descentrado é habitado pelas dimensões estrangeiras-familiares, ou melhor, ele é produzido e produz suas experiências sendo o estrangeiro ele mesmo. O estranho habita o sujeito, o estranho é o íntimo desconhecido, podendo ser atribuído também à vivência da loucura. Desse modo, a loucura torna visível o estranho de si mesmo. É a expressão máxima de uma vivência em que o 'estranho-familiar' toma a cena das experiências humanas, ou ainda, ela se torna a figura no acontecer psíquico.
A loucura durante muito tempo foi atribuída a perda da razão. O controle do sujeito sobre o outro e sobre si mesmo, criando normas e leis rígidas, disciplinam corpos e mentes e tem como questão central controlar a estranheza de cada indivíduo, particularmente, e controlar as forças estranhas e avassaladoras que não cessam de ameaçar as sociedades. Na tentativa de aplacar o 'estranho-familiar' e controlá-lo, são criadas "represas", cujas "comportas" encarregam-se de dar vazão ao 'estranho'. Essas "represas" e suas "comportas" nada mais são do que as diferentes representações culturais ou 'espaços-lugares' instituídos pela cultura (religiões, escolas, valores, tabus etc.) para acolher e simbolizar o 'estranho-familiar' que habita o sujeito das linguagens.
É tênue o limite que separa o natural do sobrenatural, o racional do irracional, o consciente do inconsciente, a normalidade da loucura. O sujeito é constituído por esses paradoxos, podendo ser a loucura concebida como a estranheza que habita o sujeito, porém devendo ser repelida pelo mesmo, pois é fonte de ameaça devido sua força avassaladora.
Aquelas "comportas" constituem o mundo de linguagens por onde é possível o sujeito criar e recriar-se constantemente. Introduzir-se na linguagem e participar das suas diferentes formas expressivas é uma maneira de partilhar a loucura nossa de cada dia, considerada no que fato Uma vez "filtrada" do seu fim destrutivo, a loucura é fonte de criação e produção. Neste sentido, vale perguntar: o que seria do sujeito se não houvesse no interior dele mesmo o estrangeiro? Provavelmente não seria capaz de criar formas de linguagens tão diversificadas, presentes nos contextos culturais sempre marcados pelos pluralismo.
(Marcus Moreira Machado)
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