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quinta-feira, 15 de maio de 2014

SEGUNDA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2014: "A EDUCAÇÃO PRISIONAL NA PEDAGOGIA DA OMISSÃO"


O crescimento no número de presos no Brasil é espantoso. Na última década, houve um aumento de 78% no montante de encarcerados do país. Nos últimos 24 anos (1990/2013), o crescimento chega a 511%, sendo que no mesmo período toda a população nacional aumentou apenas 30%.
Se comparado em percentuais ao ano, em 2013, o índice de natalidade no país foi registrado em 0,9%, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto o acréscimo de presos, no mesmo ano, chegou a 6%.
Alarmante, a população carcerária tem elevação média anual de 12,55%, consideradas a duas últimas décadas. Este crescimento quantitativo de presos configura a convencionalmente denominada “crise do sistema carcerário brasileiro”. Termo genérico, englobando um conjunto de problemas relativos ao sistema, objeto de diversas análises e denúncias, agravadas as possibilidades de retorno ao crime por ex-detentos, tornando ainda mais estratégicos o apoio e implemento de projetos e propostas de educação prisional.
Embora relativamente antiga no Brasil, sendo objeto de determinação legal ainda nos primórdios da república, a educação prisional tem sido, recentemente, objeto de maior preocupação. Iniciativas de organismos federais brasileiros, notadamente das áreas da justiça e da educação, têm ressaltado a importância estratégica do trabalho pedagógico, desde que criativo e de qualidade, além de adequado ao universo do sistema penitenciário.
Para a implementação dessas ações, tem-se contado com a contribuição material e técnica de organismos internacionais, afirmando-se, desta forma, ser o direito à educação para os indivíduos encarcerados, um direito humano essencial e não algo certamente desejável, mas imprescindível a sociedades que, como as latino-americanas, aspiram ser democráticas.
Especificamente quanto ao Brasil, as iniciativas fundamentam-se em diversas leis que estabelecem o direito de educação para os apenados, ainda que nem sempre este direito seja efetivamente assegurado.
No âmbito das instituições prisionais, ainda persistem grandes barreiras ao ensino dos presos, a começar pela falta de espaço adequado às atividades educacionais, a carência de professores devidamente capacitados e remunerados, além de agentes penitenciários, nem sempre aptos a um trabalho que não se restrinja tão somente aos seus aspectos imediatamente repressivos.
Trabalho e educação são categorias presentes em todos os projetos de reinserção ou ressocialização de apenados. Entretanto, muitos desses projetos são criticados por se mostrarem inadequados para o atendimento dos objetivos a que se propõem, sobretudo quando, voltados para a “formação profissional”, terminam por se restringirem à transmissão de informações sobre atividades manuais simples, sem maior atenção quanto ao desenvolvimento de capacidades reflexivas e expressivas dos participantes, limitando-se apenas a serem cursos de rápida capacitação, desconsiderando características culturais próprias dos apenados e não atentando para a importância do trabalho pedagógico sobre elementos de ordem emocional, perceptiva e cognitiva.
Para que algum grau significativo de sucesso possa ser alcançado em propostas de reinserção social, é necessário que educação e trabalho sejam percebidos como elementos de uma totalidade integrada, não se estabelecendo hiatos entre as atividades laborais e as educativas. Estas últimas, em especial, devem ser compreendidas em todas as suas dimensões e potencialidades, não as restringindo a formalismos escolásticos, segundo os quais ações classificadas como culturais e/ou artísticas não seriam considerada propriamente educacionais.
Assim, as práticas educativas devem contribuir para que os presos tenham maior compreensão dos processos de trabalho, das transformações tecnológicas e organizacionais em curso e dos significados e possibilidades que o seu domínio pode lhes proporcionar.
Não é possível, contudo, desconsiderar as dificuldades de qualificação da população carcerária brasileira, composta por indivíduos de baixa escolaridade, quase sempre marcados por históricos pessoais de relações adversas com a escola (reprovações, conflitos institucionais, abandonos etc.), as quais dificultaram o desenvolvimento e exercício de competências necessárias ao sucesso educacional, como, por exemplo, uma melhor capacidade de expressão oral e escrita. Observe-se ainda que a própria experiência existencial do aprisionamento, com toda a estigmatização que a acompanha, tende, de modo geral, a agravar a situação desses indivíduos, ampliando sua fragilidade psíquica, manifesta sob a forma de instabilidade emocional, baixa auto-estima, intolerância, agressividade, desmotivação e ausência de perspectivas de futuro, contribuindo ainda mais negativamente para o bloqueio de competências empregadas no processo formal de escolarização.
Reverter esta situação de vulnerabilidade social, cultural e emocional dos detentos, é permitir-lhes recuperar o poder da palavra, de sua voz, gerando-lhes uma tomada de consciência, que lhes possibilite assumir novos valores, atitudes, habilidades e competências, como sujeitos de si e não segundo estereótipos presentes em nossa cultura, que os definem exclusivamente como seres odiosos, marginais e perigosos, a serem excluídos do viver coletivo.
Portanto, é sempre necessário sublinhar que as atividades desenvolvidas nos projetos educacionais destinados à população carcerária devem salientar o valor político fundamental da indissociabilidade entre práticas educativas e exercício da cidadania.
Em contraposição ao histórico intento institucional de eliminação da individualidade dos internos projetos educacionais devem ressaltar o significado estratégico das práticas educacionais para a resistência e reconfiguração das identidades dos apenados, mediadas por ações criativas que também lhes possibilitem, mesmo de modo mínimo, a compreensão crítica das situações vivenciadas ao curso de suas vidas, bem como do presente cenário institucional em que se encontram, não raro marcado por atos diversos de violência e autoritarismo, praticados, inclusive, pelos próprios integrantes da população carcerária, colaborando, deste modo, para a superação de perspectivas e comportamentos politicamente ingênuos, que concorrem para a perpetuação do status quo.
Em todos os momentos, as ações educacionais devem apontar e ressaltar a condição dos apenados, como agentes socialmente determinados e produtores de suas histórias e trajetórias de vida e, neste sentido, capazes de construírem meios para não apenas evitarem a, infelizmente nada incomum, reincidência no crime e no encarceramento, como também assegurar, quando egressos, a inserção bem sucedida no mercado de trabalho e, especialmente, empreenderem o exercício político próprio à condição de cidadãos minimamente autônomos, repensando suas posições no espaço social e de suas relações com seus grupos primários de origem.
Projetos educacionais devem buscar dotar seus participantes de instrumentos capazes de empreender o repensar crítico de posturas que, expressas sob toda a sorte de estereótipos, legitimam mecanismos de dominação social, perpetuam processos de seletividade e discriminação, obstaculizando a democratização da sociedade brasileira, na medida em que definem os segmentos que mais sofrem as incidências das desigualdades sociais como objeto principal de atos repressivos.
É preciso conceber as ações educacionais não formalmente escolares como oportunidades privilegiadas de promover a capacidade de “leitura do mundo”, mediante a contribuição, entre outras, das artes, articulando-as a outros campos de conhecimento como a filosofia e as ciências humanas. Ao ressaltar, a força da criatividade manifesta no agir artístico, projetos educacionais poderão contribuir, com inegável valor de ordem política, para o desenvolvimento da cognitividade, da percepção critica dos interesses presentes na cena social e da produção, sob diversos modos, de ações e discursos que aspirem superar os efeitos de relações sociais que incidiram (e incidem) sobre a população carcerária.
Deste modo, poderá ser enfatizada a importância (como política pública) do empreendimento de ações que, levando em conta as particularidades da população carcerária, tornem a educação prisional, em suas várias formas e manifestações, um instrumento de construção e consolidação da ainda inconclusa sociabilidade democrática brasileira, com a reinserção não dos excluídos, mas dos suprimidos pela oficiosa “pedagogia da omissão”.

(Caos Markus)



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