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sábado, 5 de dezembro de 2009

SEXTA-FEIRA, 1 DE JANEIRO DE 2010: "PONTOS"

São 2 os pontos de vista.
Um é ponto de fuga, aquele inicial, quando se projeta perspectiva arquitetônica.
O outro também são dois: a menor distância entre 2 pontos é uma reta.
Aproveitar é tirar proveito?
Provar é experimentar? Ou é demonstrar o que se alega?
Hein?!
(Marcus Moreira Machado)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

QUINTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2009: "REGURGITO"

Eis os limites à que nos reduziram: externamente, a pressão do neocolonialismo; aqui dentro a evidência do coronelismo por mandato, confundindo lei com ordem-de-serviço. A aritmética de um e de outro é ficção, é surreal, é ilusionista , Steven Spielberg, Salvador Dali, David Coperfield. Valor nominal e valor real são tratados como uma coisa só, o mesmo número; comemora-se a queda vertiginosa da inflação para percentuais mínimos enquanto a miséria grassa em geométrica. Os indicadores econômicos orientam contribuintes na desorientada bússola da reivindicação social; e o movimento sindical senta no rabo porque não aprendeu a fazer outras contas senão as do patrão . O país tropical, que tanto se orgulha de não ter terremoto nem morro de ventos uivantes , faz vista grossa ao “abalo sísmico” com “C” de cebola, provoca fendas e grotas na sua sociedade “extratificada” com “X” de “maucon-néx” róliudiano. O que fisiologicamente obriga a nação a ser ‘rép’; falando e escrevendo sem vírgulas , ansiosa por chegar lá , aonde a classe operária vai ao paraíso . Temos visconte - biscoito e chocolate; temos felino - gato siamês, xifópago, sete vidas e um destino; de cinema não temos o novo , ainda que por aqui Deus e o diabo esteja na terra do sol; do italiano temos uma certa inclinação mafiosa para desejar ter nascido na Calábria e comer o espaguete alheio; do francês nem Godard, apenas a vaga lembrança de um 14 bis sobrevoando Paris pelas mãos de um refinado Dumont. Você já foi à Bahia ? Então não vá .Barra por barra, farol por farol , Rio de Janeiro continua lindo ( Alô, alô, aquele abraço ! Alô, alô, eu me desfaço ! ), tem Teresa da praia que não pode ser minha nem sua também. ( E a garota de Ipanema, mora hoje em Vigário Geral, Lava roupa todo dia, que agonia ? ) . São Paulo, meu irmão de fé, meu amigo, meu camarada lenitivo ( nada , mas nada mesmo a ver com Lenin), não é mais da garoa, é submersa nas torrentes das paixões políticas que vão para o esgoto entupido da plebe rude. Não fume quando vier para cá. Nem pise na grama do Pacaembu, nem se esqueça, jamais, de fazer aquilo a que já está habituado desde o primeiro plano sazonal da temporada de caça aos famintos: aperte os cintos e sinta “uma-lufada’ de ar oxigenando os seus pulmões ecológicos como a rosa de Nagasáki, sempre que descer na liberdade. Liberdaade, liberdaade... abre as asas sobre nós...nas chuvas, nas tempestades, nas inundações...!! ACM não é nome de empresa, é de empresário-senador da república dos guaianases, aimorés, txucarramães (?), do serviço de proteção à Funai. Não confunda sigla com frase, essa última há uma no seu pavilhão auri-verde tetra, seleção canarinho apreendido na alfândega por excesso de alpiste importado-contrabandeado do Tio Sam . Eis os limites da fronteira da Ilha fantástica de Vera Cruz , que também se notabilizou filmando chanchadas, em co-parceria com Atlântida. Eis os confins do bye, bye, Brasil , onde eu mato a minha sede. Eis que de repente, não mais que de repente, em Teotônio Vilela os técnicos-nutricionistas do poder (eu tenho à força !!)público descobriram uma fórmula de salvar criancinhas esfomeadas: alimentando-as. Eis que é chegada a hora de bradar “Viva Zapata” aos astecas mais próximos dos maias. Que bonita camisa, Fernandinho ! É nova do século passado ? Não só a pimenta do vatapá é indigesta. O dendê para quem não está acostumado, é tão indigesto quanto esse virado-à-paulista, mineiro, piauiense, capixaba, potiguar , gaúcho ... pois que Babel fica estrategicamente no Planalto Central, bem ali atrás do morro, onde eu corro num segundo começo a pensar. Por isso, não deveria faltar, jamais, nunca mesmo nem no varejo nem no atacado, sal de fruta. E, com tanta acerola, pitanga e tamarindo , esse imenso parque hortifrutigranjeiro da Fazenda Modelo não deveria deixar de privatizar as estatais de sal de fruta tropicais, evitando a indisposição reinante de quatro em quatro anos . Você decide: ou se desliga de uma vez por todas -plim, plim - ou muda de canal. O que não dá mais pra segurar é essa asia , esse mal-estar, esse estômago nas costas de quem tem costas larga. A reforma tem que ser de base: ou você se cuida, relaxa e goza com a cara-de-pau que são aqueles outros, ou você muda de time. Se bem que não haverá diferença, você será sempre um gozador. Não é, baby ? Afinal, há quem goste, e não são poucos, desse cardápio inspirado nos mais renomados gourmets, de Felipe Gonzales a Ernesto Zedillo, dessa mesa farta da pajelança nacional. Ou o sertanejo não é antes de tudo um forte, um bravo ? Afinal, eis o final, the end, the happy end do american way of life da Doutrina Monroe, de Jefferson e da América para os americanos. Atrás do trio-elétrico só não vai quem já morreu. Na ressaca a gente toma sal de fruta .
(Marcus Moreira Machado)

QUARTA-FEIRA, 30 DE DEZEMBRO DE 2009: "EXODUS"

O Brasil não precisa de presidente, precisa de um flautista, e de um flautista mágico. Não mentiram quando disseram “um elefante incomoda muita gente...”, mas incomodam muito mais os ratos que põem inerte uma manada de paquidermes. E como temos ratos! Se fossem camundongos adestrados em condicionamento de Pavlov o país ainda estaria sob controle, não importaria a apatia dos proboscídeos estarrecidos. Motivo de grande preocupação, entretanto, e, antes, a profusão de ratoneiros a confirmar o provérbio “a montanha deu à luz um rato”, em sucessão de promessas pomposas com ridículos resultados. Então, precisamos mesmo de um flautista e não de um presidente; não a flauta do “ ‘seu’ Bartôlo tinha uma flauta, a flauta era do ‘seu’ Bartôlo...”, porque dessa já tivemos e até cansamos de cantar “toca a flauta, ‘seu’ Bartôlo”, em desafinada melodia, ainda mais sabendo “que isso em mim provoca imensa dor”. Chega de samba de uma nota só; a garota de Ipanema nem vai mais à praia, nem quer o escurinho do cinema. Trevas nunca mais! Acendam a luz, vamos ouvir a sinfonia de pardais no trinado dos bem-te-vis da praça é nossa como o céu é do avião, gorjeando e caetaneando em puro guarany de Carlos Gomes no A B C de Castro Alves. Aflautemos o hino pátrio na mais pura tradição da mocidade independente de vigários gerais. Afinal, para que “spalla” em coro de atabaques?! Hein, pobres moços? Ah, se soubessem o que eu sei...! Mas, as rosas não falam, e eu cá fico quieto, incapaz que sou de tirar coelho de cartola. Que fale Gregório: “Há coisa como ver um Paiaiá/Mui prezado de ser Caramuru/Descendente do sangue de tatu/cujo torpe idioma é Cobepa?”. Um tocador de pífaro, em meio ao repentismo congressista, ia bem melhor que um blue. Ou Cleópatra também não ninou ao som de um “aulete”? Pois, não é este um, país da fatalidade? Merece uma fábula, portanto. A raiz grega é a mesma, e dela o “fatum” latino a indicar “brilho”. (a rainha egípcia teve um romano césar a seus pés, eis porque eu acredito em fadas e duendes e lulas). Hammer ainda virá. Mil uma noites já se passaram; estivemos náufragos como Crusoé, quando um, outro césar buscava em Swift inspiração para as suas viagens em férias ao fantástico primeiro mundo de Júlio Verne; e vieram os vis roedores juntar-se aos nativos. O rato roeu a roupa do rei de Roma; a aranha arranha o jarro, o jarro arranha a aranha. Puro exercício de linguagem. Hammer virá e Andersen será primeiro-ministro a contar histórias para os meninos de rua, ensinando que criança nenhuma nasceu para morar em esgoto, que para lá é que o som do mágico músico levará a podridão planaltina. Que Pasárgada, que nada! Quem me ensinou a nadar foi os peixinhos do mar; Robson que fique e curta a sua ilha-fidel, tocando “charuto bichado” de músico amador. Não sou apenas um rapaz latino-americano e desespero não é mais moda em noventa e três. Chega de pavão misterioso. O Brasil não é uma galinha morta que se venda a qualquer preço de banana tropical. Fundo monetário internacional não dá direito a fazer do país fundo de quintal. Ninguém quis república alguma, porque nem sabiam o que era aquilo; e, ,mesmo assim, “os soldados impunham à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e francamente exposta a garganta, degolavam-na... O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão...:, como relata Euclides da Cunha, em “Os Sertões”. O tempo passa, o tempo voa, e a poupança da tal “democracia representativa” lidera os investimentos a curto prazo na idiotice institucionalizada - são “os subterrâneos da liberdade”, ou a liberdade nos subterrâneos, ou o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que ninguém deixou, ele é que se foi pelo ralo, levado e esvaziado na fossa da falência política. Nenhuma ferocidade “jacobina”, mesmo que capaz de agredir, compara-se ao tocador de flauta no que diz respeito à superação da crise nacional. Os ratos já habituaram-se aos venenos, e até crescem aceleradamente sob os seus efeitos. Fabulosamente ouviremos os acordes encantados no comando da desratização por exclusão quando, ao invés dos elefantes desprevenidos, atribuirmos poder às cobras e lagartos, bastante competentes na ingestão da repugnância roedora. O que vale dizer: na seleção natural das espécies a política brasileira sobreviverá ao banquete canibal, porque não outro será o destino da fauna liberal: devorar-se até a própria extinção. (Marcus Moreira Machado)

TERÇA-FEIRA, 29 DE DEZEMBRO DE 2009: "CADA UM E NENHUM"

Muito do que se supõe 'ideologia' nada mais é do que a total ausência de idéias, a conferir aura de humanista àquele que não possui 'lastro próprio'. Nesse caso, é bastante sugestivo o desprezo de Henry Miller às pessoas que costumam adotar os problemas do mundo. Diz Miller que "o homem eternamente preocupado com a condição humana ou não tem problemas próprios, ou se recusou a enfrentá-los". ressalvando "os poucos emancipados que, tendo refletido sobre as coisas, estão autorizados a se identificar com a humanidade". O narcisismo está definitivamente acima do altruísmo. E, por isso, é a egolatria a determinante na vida das pessoas, muito embora confessá-la é tirar um certo brilho da pretendida 'genialidade', perseguida como o maior dos objetivos. Não por outra razão tanta gente quer libertar o mundo de uma tão vaga quanto questionável tirania; ser herói ainda vivo é ter o reconhecimento exterior, uma vez que o interior é por demais inaceitável, por tratar-se de um 'juiz' muito mais impiedoso - a própria (in)consciência. Ocupar-se da liberdade alheia, buscando o que nem sempre esteja de fato faltando a outrem, tem sido uma inadmissível covardia do vampirismo político dos nossos tempos. Na falta da sua própria liberdade, o líder tem alardeado uma 'tirania' merecendo a próxima eliminação, mesmo sendo totalmente desconhecida ou pressentida pelas 'vítimas'. Trata ele de buscar na liderança a 'escravização' de que precisa para ofuscar a sua própria escravidão, presa de si mesmo. Mas, por saber que encontrará toda uma legião pronta a ser escravizada por mais alguém, porque incapaz de lidar com os seus próprios problemas, o líder não encontra grande dificuldade em dominar os que sempre existiram para o domínio. Provavelmente, eis a explicação para o 'exército de frustrados' pronto a atacar a harmonia e promover o caos. Sócios de Deus, entendem-se como tal na conclamação de Thomas Jefferson: "resistência aos tiranos é obediência à Deus". E em nome do combate à tirania é que perseguem o particular endeusamento, na obediência cega dos discípulos da prepotência. Entre nós parece não haver gente de carne e osso e sim homens que só acumulam virtudes. Certamente, Oscar Wilde, ao dizer que 'o pecado aumenta a experiência humana', não se referia a brasileiros que apenas fazem propaganda da sua imaculada honradez, baseada, invariavelmente, na luta pelas liberdades individuais, pelo Estado de Direito, e pelo direito das minoria, num clima de apocalipse espetacular. Diógenes, o filósofo grego da Escola Cínica, no Brasil não acenderia a sua tocha na procura de um homem honesto, antes compraria fogos de artifícios para comemorar o encontro com os virtuosos e varonis públicos homens. A escolher: os que depois do doce exílio na Sorbone voltaram para casa, capacitados pelas acadêmicas aulas ministradas na gloriosa "resistência francesa" das barricadas intelectuais; os que venceram a fome e a miséria do agreste nordestino, e por isso só já são os eleitos; os que citaram Webber, Durkheim e Kant, merecendo respeito por isso; os que citaram Antonio Conselheiro e Padim Ciço, esforçando-se sempre para não ser apenas mais um deles. Bonita camisa, Fernandinho! Aonde eu fui amarrar o meu jegue, êta cabra da peste! Não pense no que o seu país pode fazer por você mas sim no que Kennedy fêz pelo Vietnan. Abraão Lincoln foi o salvador da raça negra, e por isso Ray Charles fez tanto sucesso; Tolstoi profetizou um mundo sem ódio, esse o motivo do arrependimento ineficaz pela bomba em Hiroshima; Ghandhi foi vanguardeiro de uma nova era, de paz, essa a razão da mortandade do Zaire. O mundo está repleto de pessoas bem intencionadas. E o Brasil mais ainda. É muita gente se achando no dever de nos salvar do perigo iminente que se avizinha e avança sobre nós de forma impiedosa - ou pelos baixos salários que recebemos em função de eventual acordo com o F. M. I., ou pelo pouco que ainda temos e corremos o grave risco de até sem isso ficarmos, pela 'socialização' da sagrada propriedade privada. Enfim, há muito 'mocinho' para pouco 'bandido'. Ou de fato ninguém tem os seus próprios problemas, a ponto de ter assim tanto tempo de ser abnegado e pretender redimir a raça humana na face da terra, ou o mundo já está sensivelmente melhor, dada a enorme quantidade de 'redentoristas' que se entendem autorizados a se identificar com a humanidade. A Igreja quer nos salvar, a política idem; os artistas e os filósofos não têm outra inspiração senão o nosso resgate para uma vida que eles imaginam ser os únicos a perceber. Mas ninguém, ninguém mesmo tem a delicadeza de nos perguntar se queremos todos ser salvos. Ou melhor, se precisamos ser salvos de um perigo que não existe a não ser na cabeça de quem precisa de perigo para justificar o despropósito da sua própria existência. Viver talvez seja um grande perigo que devemos todos experimentar, muito mais sem medo de sofrer do que sem medo de ser feliz. Porque, afinal, felicidade e disco voador têm algo em comum: pouca gente viu, mas muitos querem acreditar que existe. (Marcus Moreira Machado)

SEGUNDA-FEIRA, 28 DE DEZEMBRO DE 2009: "CONJUNTO VAZIO"

Não sei se é coisa da idade, por eu já não ser mais moço. a verdade é que jamais estive assim tão fatalista. Muito pouco eu acredito naquilo que leio nos jornais, ou ouço na TV e no rádio. A cada vez que um político, seja ele parlamentar ou ministro, declara a sua intenção de não prejudicar os trabalhadores, é exatamente no contrário que creio. Não é espírito prevenido nem nada parecido. É que gato escaldado tem medo de água fria. Sempre que se fala em estabilização econômica, eu penso que vão estabilizar a nossa miséria e consolidar a riqueza deles. E tenho motivos para pensar assim. Afinal, temos trocado seis por meia-dúzia há tempo. “Mulher de malandro”, parece que aprendemos a gostar de apanhar e acreditar que foi a última vez. Rendidos aos proxenetas da política nacional, somos sistematicamente seduzidos pelas vãs promessas do dinheiro fácil, sem prévia análise do caráter desse jogo de seduções. Acostumados ao assombro pelos rótulos, qualquer nova “marca” de economia nas “prateleiras” dos salvacionistas planos ministeriais nos convence ao seu consumismo imediato. Não é um fascínio descobrir as engrenagens da “OTN”, do “INPC”, da “TR”, do “IGPM”? Quanto mistério, quanto sigilo no ar professoral das eminências pardas! Mas, é mesmo necessário o silêncio quando o que se pretende é surpreender os incautos. Governo que é governo não governa, antes, baderna! Quanto menos um de nós - simples mortais - entender daquilo que nenhum entendimento tem, mais fácil se torna a “imortalidade” do poder. Ando meio em dúvida se abro uma empresa de consultoria para assuntos estratégicos paragovernamentais, ou se monto um boteco. Pois, os grandes problemas do país encontram solução sempre mais simples em qualquer boteco mais ordinário. Não é preciso ser mais que um sujeito mediano, é totalmente desnecessário um intelecto privilegiado para entender de economia, a cada instante em que ela é reduzida a um mero cassino de roletas e bacará. Truco!! Tal qual um jogo de azar, o blefe na - política econômica brasileira - é sinônimo da astúcia dos seus apostadores. Criar expectativa é um ótimo negocio. Para o parceiro, logicamente. E quem não tem cacife não pode jogar. Ingenuidade seria exigir comportamento diferente dos dirigentes nacionais. Afinal, o brasileiro não está preparado para ser eleito, muito mais do que está para votar. O que importa não é o voto do analfabeto, do menor com dezesseis anos; o que de fato preocupa é a candidatura de tantos quantos tenham sido “alfabetizados” em “idiomas” distantes da realidade nacional. O povo é burro. É o que o próprio povo diz por aí. Ninguém se achando povo, todo mundo colocando a culpa num tão vago quanto falso e longínquo “outro”. “Outros” são despreparados, “outros” são desinformados, “outros” são alienados. Nunca a gente mesmo. Muito pelo contrário, o que ainda segura o Brasil é gente como a gente... ilustrada, capacitada, porém desprezada nessa total inversão de valores. Santa hipocrisia! Essa mesma hipocrisia que manda ao estrangeiro a própria pilhéria como marca de toda uma nação! Para depois sermos obrigados a ouvir como nossa referência: “É coisa de latino”. Cada povo tem o governo que merece ou cada povo tem o governo que carece? No nosso caso insistimos em precisar eleger pessoas que representem a nossa confusão. Desse modo, um reduzido grupo de articuladores redefinem a nossa singular indefinição: ora estamos à direita, ora estamos à esquerda, em oblíqua visão de quem não a tem. De que mal padecemos? Por que esta baixa auto-estima a exaltar insinceras qualidades de elites intelectuais supostamente ecléticas? Que crucial determinante obriga-nos à condições de vítimas desse que é o grande flagelo das civilizações, a ignorância? Há vocação para a estupidez? Talvez haja alguma explicação no fato de que dentro de cada um de nós, sem exceção, existe um insolente em latência, aguardando - no ciclo “estímulo-resposta”- o momento para ressurgir. O que justificaria tanta aparente contradição. Pois, de que outra maneira entender o brasileiro que protesta mas faz igual? Certamente, o nível moral anda baixo. E nenhum plano econômico que evite priorizar o equilíbrio na distribuição da renda nacional conseguirá outra coisa que não seja a manutenção desse conflito. O acesso, pela melhoria do poder aquisitivo, a um padrão cultural de bom nível, poderá resgatar todo um povo, para colocá-lo além das fronteiras do absurdo e do caótico. Porém, nada positivo pode-se esperar quando o lema parece ser “se hay gobierno, hay baderna”.
E não outra coisa é o que se vê na administração da economia brasileira: baderna.
(Marcus Moreira Machado)

DOMINGO, 27 DE DEZEMBRO DE 2009: "O QUE SERÁ?"

Entre o "nirvana" e o "niilismo", à primeira vista, parece haver diferença fundamental. Contudo, um e outro, em determinados estágios de uma pessoa humana, adquirem conteúdos semelhantes, dada condição que esta última tem de procurar no "vazio" uma resposta para lenir as suas agruras. Pois, da língua clássica indiana - o sânscrito, denominando a beatitude budista operada pela absorção da individualidade extinta no espírito superior período do Universo, e do latim como raiz da doutrina política que postula pela destruição completa das instituições sociais como base para o progresso humano, nirvana e niilismo têm caracterizado o oblívio com que significante parcela (senão mesmo a maioria) de sujeitos se identifica. O "desligamento", a desvinculação, formas de uma pretensa e vaga “neutralidade”, são mais que isso, são artifícios comumente utilizados para couraçar, evitando-se ouvir a razão e preterindo-se a sensibilidade. Arma poderosa, a "psicologia de massas", trata de condicionar as multidões para o alheamento, fazendo-as crer numa superioridade conquistada apenas do esoterismo alienante e do absenteísmo pusilânime. Liderança políticas e religiosas têm compreendido como imbatível estratégia na conquista e manutenção do poder a disseminação de "filosofias" exóticas a assegurarem um inconformismo desprovido de circunspecção, mais inclinado à volubilidade. Anular a capacidade de reação, substituindo-a pela sujeição à modelos presunçosamente libertários, modernamente é mais que mera concepção, é antes de tudo instrumento de "condução". Assim é que os excluídos da "felicidade" devem procurar na "auto-ajuda" uma receita para aplacar a angústia, invariavelmente através do método anódinos, de curto alcance. A propaganda, atingindo níveis de superação crescente, cuida de regular a demanda dos necessitados, pela invasão sutil da privacidade, instituindo "linguagens" e "normas" a cada instante, padronizando a individualidade pela sua mais completa neutralização. A liberdade, assim, não é mais direito, e sim "dever" de "conquista". A deturpação dos conceitos genuínos acarreta, então, o torpor característico do arroubamento do espírito e do desatino mental. Forjado na expugnação da própria alma, o intelecto nada mais engendra, produto que se torna da dissimulação. O encantamento ou a negação como procedimentos humanos remonta, é certo, aos primórdios da civilização, não obstante existissem exceções sempre prontas a discernir o "ser" essencial. É dessa forma que, pelo testemunho de Platão, na "discussão das Penas" indaga Sócrates aos atenienses: "Que sentença corporal ou pecuniária mereço eu que entendi de não levar uma vida quieta?…não me dediquei àquilo, a que se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular… tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo…?" A filosofia grega, aliás, demonstra sincera preocupação com a vida como criação, construção, opondo-se à destruição. Assim, os platônicos, chamando ao Demiurgo "o Grande Arquiteto do Universo", atribuindo-lhe a criação do homem Deus, encontram no vocábulo grego "architekton" uma singularíssima orientação, uma vez que "arche" significa "substância primordial" e "tekton" quer dizer "construtor". Sendo a "substância primordial" e "tekton" quer dizer "construtor". Sendo a "substância primordial" algo de misterioso e transcendental, cientificamente equivalente ao átomo primitivo do ensaio cosmogônico de Lamaitre - a origem dinâmica de tudo o que existe, "arquiteto" é "almo" por excelência, é "criador", o construtor da substância primordial". A "Idéia" concretizava-se, então, no plano mental, partindo "do campo sutil das ignotas regiões do pensamento abstrato". A ordenação, a utilização, a manipulação da "substância primordial" é a concretização da "Idéia". O "vazio" e o "nada" não tem lugar na concepção do "ser". Afinal, quer seja pelo Substancialismo Ontológico - fundamentando e explicando a realidade cósmica, servindo de substância permanente e imutável às modificações fenomênicas da natureza -, quer seja pelo Fonomenismo - expressando, contrariamente o incessante devir desse mesmo universo natural-, o "ser" é compreendido como um princípio metafísico. E, se por metafísica devemos entender "o inventário sistemático dos conhecimentos provenientes da razão pura", a "teoria das idéias", abster-se do raciocínio, ou raciocinar pela destruição, é também negar-se enquanto "ser". Não existirá, sobre maneira, nenhuma concepção de liberdade embasada no pretenso atributo do "não ser" e do "não estar". Não admite-se "neutralidade", quando "liberdade" é comprometimento com a natureza universal, é pertencer, é o engajamento com a vida, pela resolução dos seus problemas moraes e sociais. A Tragédia do intelectual que não sabe agir, concebida por Shakespeare, em Hamlet, pode dar conta da dualidade no pensamento, porém deve servir como advertência à definição imediato e simplista do "ser essencial". O próprio expoente da literatura e da dramaturgia inglesas - cumpre notar - foi ele mesmo a soma dos seus milhares de personagens, não podendo ser analisado ideologicamente; filosofia e crenças, múltiplas, não encerram nenhuma definição isoladamente, eis porque a identificação se opera individualmente. Assim como em Shakespeare, "ser" ou não "ser" é pura reflexão, jamais determinação.
(Marcus Moreira Machado)

SÁBADO, 26 DE DEZEMBRO DE 2009: "PASSIONAL"

Nunca, como agora, teve a Humanidade um conflito tão difícil de resolver. Está encurralada de tal maneira que se encontra num beco sem saída. As realidades, comprometidas com o movimento impetuoso do progresso, parecem haver ultrapassado a inteligência. Jamais se registrou na História o espetáculo de um caos social e econômico semelhante. As consciências se despertam, pretendem escapar ao silêncio, mas uma vez liberadas pelo esforço arrebatado se entrechocam, cegas, enquanto a realidade continua dominando-as. Alguma coisa de vulto pesa sobre a sociedade. É uma enorme interrogação. O que fazer? Aonde ir? Como tomar a direção do mundo? Quando há guerra, todos perdem. Na paz ninguém se entende. Olhamos ao nosso redor e descobrimos as ambições de alguns homens, a ignorância de outros e a miséria de muitos. Diante de tudo descobrimos a revolução que a técnica tem operado no mundo. Em geral, o sindicalismo crê que o maior conflito encontra-se na economia atual. Os economistas não sabem como coordenar as novas forças de produção e adaptá-las a fins sociais justos. O verdadeiro conflito está na luta que existe entre a maneira de produzir e a forma de vender as riquezas, sem criar obstáculos na forma de aquisição. Eis aqui a dificuldade. Se perdurar o império do regime de liberdade econômica, o mundo estará envolto em tremenda crise, que decretará o seu fim. Contra isso impõe-se uma solução: a ditadura econômica dos grandes monopólios, auxiliados pelo Estado. O produtor protesta. Aquele que sofre se indigna. Também tem sua doutrina para defender-se. É socialista, comunista ou sindicalista. A própria técnica nova também lança o seu protesto. Avança, cria novos métodos de cultivo, aumenta sem cessar a produção, lança o homem à parada forçada. O homem e a História lutam por separar-se do passado; uma parte se imobiliza estagnada, outra se detém nas perspectivas do futuro, como se temesse entrar no presente. Todavia, pesam sobre nosso espírito as antigas crenças, as antigas idéias, os tradicionais procedimentos. Lutam a idéia antiga com a realização moderna. E, desta luta advém os contínuos choques de homens contra homens que, em sua inconsciência não são mais que a resistência de um passado que se nega a perecer e de um presente que luta irresistivelmente para abrir caminho. O interessante é analisar e investigar o presente, para, depois, combinar um método de ação que seja favorável à evolução histórica do nosso tempo. E, se este método encontrar resistência, será dos que resistem ao progresso. Necessário é construir, a medida que se destrói, para, num determinado momento, recolher todos os escombros que impedem o crescimento. Ao revolucionar a infraestrutura, o socialismo tem sido uma crença, e sua ação é de ordem puramente emocional. O que necessita a classe trabalhadora é um método que responda a uma visão clara do futuro. E não mais idéias que imprimam, pela força, a marcha evolutiva dos povos. Pretende o sindicalismo evitar as contradições econômicas do nosso tempo, através da superação do processo político. Entretanto a História registra que todas as ditaduras democráticas ou proletárias sempre têm conduzido a iniquidades sociais. Mesmo Marx afirma que nem na sociedade comunista se poderia dar ao operário o produto total de seu trabalho. E as relações de dependência nascidas no corpo do proletariado, embora fruto de sua própria organização, têm dado origem a novas desigualdades. Aconselhável, pois, que ao protestar contra as condições de sua exploração, os trabalhadores aproveitem suas mesmas fórmulas, no que possuem de fundamental e histórico.
(Marcus Moreira Machado)

SEXTA-FEIRA, 25 DE DEZEMBRO DE 2009: "ONÍRICO"

Ao som de um bolero vienense , valsavam todos um maxixe na corte do rei na barriga. No frenesi, ninguém suspeitava que a seca já não era mais nordestina, castigando agora toda a democracia racial irmanada o projeto de redenção do ser desumano. E chovia tanto lá fora, mas chovia tanto, a ponto de não perceberem, que os tempos eram outros, não mais os bons tempos da felicidade geral da nação; se dançavam conforme a música, bailavam sem melodia, pois a orquestra cochilava, exausta e repetir economicamente as mesma seleções. Eis que a voz do Brasil emudece. Geleia geral. Afinal, por que silenciara o brado? E o bardo porque não trovava as canções à formosura feminina das tropas entrincheiradas no golfo da baía da Guanabara? Estácio de Sá e São Sebastião bem que serviram de exemplo aos incautos sobre o pouco ou nenhum valor das flechas de cupido. Somente um motim explicaria aquelas naus à deriva, sem socorro algum, perdidas no triângulo de vértice apontado para baía dos porcos latinos! Desesperadamente, ao alerta estrondoso acorreu a multidão para o abrigo anti-eleição evitando ser torpedeada pelos napalms de gases paralisantes. Os sobreviventes lembrando Orwell, revolucionaram em perfeita coalizão com um admirável mundo novo, todo cheio de expectativas, prometedor e cumpridor dos básicos direitos dos sem-ticket-refeição. Era a aurora de um novo mundo, e o crepúsculo dos machos da egologia gabeira de tantos clamores do deserto. Vaticinavam o plausível, proclamando crime de guerra a idolatria e a comunhão universal de bens. Ótimo, acreditavam. Excelente, imaginavam. Então com explicar o surto de febre verde-amarela contagiando de progresso a desordem na plantação de bananas da república? Obra de acaso? Não, definitivamente não. Não se permitiam interpretações doutrinarias, ainda que alicerçadas em decisões jurisprudênciais; o retrocesso seria expurgado a todo custo, exilado aos confins da reduzida mata atlântica, sem direito a verde, sem passagem na ponte aérea dos zepelins. A própria lei da gravidade, bem como a sua irmã siamesa, a da oferta e procura, foram abolidas, para coibir os que levitavam na demanda. Aquela enfermidade, certamente, aparentava ser um resquício da ditaduras, ou melhor, de todas as ditadura adormecidas no extinto vulcão da cordilheira do planalto do centro-oeste, leste-sul do Trópico por onde morreram na praia tantos projetos faraônicos. Ao longe alguém - não se sabe quem - cantarolava despreocupadamente uma nova cantiga de ninar, inspirada, talvez, nos cânticos gregorianos, dos mais modernos papas da mídia eletrônica. Anunciava-se a vinda celestial das ondas sonoras captadas nas antenas de retransmissão dos mais íntimos impulsos passionais, avizinhava-se a salvação pelo sagrado direito que todo homem livre tem que permanecer calado para não aborrecer o seu próximo; direito à defesa, até prova em contrário, seria norma constitucional sempre sujeita à revisão dos salários parlamentares. Dito e feito. Nunca mais os trocadilhos seriam a máxima expressão da realidade nacional. Canudos fora advertência na guerra peruanos do fim do mundo; Euclides e Vargas assinavam a paz sobre a controvérsia a respeito de Glauber: Deus ou o diabo na terra do sol? Ou um outro; o que não poderia persistir era a dualidade, o dúbio, a flexibilização da agulha magnética desviada do norte para o leste europeu. Daquele momento em diante, Bizâncio e Constantinopla seriam, como de fato muito antes pretenderam ser, uma sé cidade, de cristões e cretenses, de minotauros e dinossauros, apenas jurassicamente falando. Aliás, falando não; escrevendo em braile, porque até cego enxerga um palmo adiante do nariz do pinóquio. E por falar em boneco, Gepeto, convidado a presidir a instalação fabril de todas as unidades táticas e móveis da barbie, optou, finalmente, pela industrialização da seca, muito mais rentável no mercado de futuros. A notícia fez tremer as bolsas e os valores éticos dos discípulos de Newton. E a mesma maçã do Guilherme Tell foi a que ressuscitou toda uma nova geração em gestação, unida ao passado por ascendentes fidalgos da marquesa do Sapucaí. Tudo sob o olhar crítico dos jurados da televisão em preto e branco contrabandeada do éden fiscal, aquele mesmo à 90 graus de Greenwich, abençoado por Deus e bonito por natureza artificial, porém convincente. Ora bolas! Quem de sã consciência daria crédito aos inconvenientes sindicalistas, justamente agora que todo mundo percebia salário-máximo e teto salarial em turno de revezamento onde os trabalhadores tinham direito adquirido sobre o torno, a foice e o martelo?! Já não passava de conversa fiada a quase sem voz de comando da companheirada a bordo de um possante G II plus, Light, todos light, brightness!! Depois não vá dizer que se arrependeu. O tempo passa, o tempo passa, e a poupança também, como tudo além do horizonte perdido vira um dia Xangrilá, e pra lá de Bagdá, com ou sem lâmpada e tapete voador de Aladin. Vira, vira, vira! Vira, vira, vira! Vira, vira… vira/lata não é só cachorro de terceiro mundo, não. Porque noutras dimensões, nos mundos paralelos, muita gente quer ser como a gente; assim meio brega, meio chic, cheio de amor pra dar, um poço sem fundo de esperança uma coisa danada de boa.Eu vou cantar pra vocês como é que se dança na corda bamba uma ginga de olundum-afoxé; eu vou contar pra vocês esse meu sonho, esse sonho meu de ainda cruzar os mares num bondinho redentor, atravessando a fronteira da imaginação, porque essa é a única que eu, você, todos nós, podemos sempre atravessar sem medo de ser feliz - assim mesmo, no infinitivo, no singular, pois que nada mas ímpar existe além dessa estranha matemática.
(Marcus Moreira Machado)

QUINTA-FEIRA, 24 DE DEZEMBRO DE 2009: "MORTALHA"

Muito embora um sem número de pervertidos busquem saciar o seu prazer na mortalha guardada para as exéquias de uma anciã decrépita, em manifestação de descomunal tara e fetiche singular, certamente é maior entre nós a quantidade de pessoas admiradoras da sensualidade insinuada na semi-nudez de balzaquianas. A volúpia dessa meia idade, revelada a cada instante, em sucessão de momentos lúbricos, quando o estímulo aos sentidos sequiosos de jovialidade adquire mais importância, é, afinal, a epígrafe mais comum dos nossos devaneios. É essa inclinação para a lascívia que nos impele a desnudar uma jovem formosa, procurando os seus mais íntimos segredos, explorando as suas mais secretas regiões, experimentando das suas paixões e fantasias. É pelo gosto à luxuria que nos embevecemos diante de tão donairosa dama, dela desejando toda a pudicícia, dela almejando a total rendição, vergada à força do mais passional apelo, da mais irresistível invocação. Assim é que, movidos por essa tendência ingênita, imaginamos possuir as musa dos nossos mais particulares caprichos através da posse daquilo que aparente ser a representação máxima do seu âmago. E, também irrecuperáveis fetichistas, ansiamos senhorear os objetos reprodutores dessa quimera. Por extensão, tudo o que acreditamos ser para nosso regozijo deverá, também, nos pertencer essencialmente; e como é bastante frequente o nosso amor aos prazeres materiais, por expressão do indomável instinto, o mundo todo se nos a figura luxuriante e disponível. Não por razão diferente, produzimos esse formidável “strip-tease”, expondo à mais absoluta nudez os atributos sujeitos à nossa ganância.
(Marcus Moreira Machado)

QUARTA-FEIRA, 23 DE DEZEMBRO DE 2009: "READMISSÃO"

Vorazes, aclamamos a propriedade com apanágio da vida. Porém, como o domínio se opera pela beligerância, será a morte declarada por necessária à manutenção da vida, no paradoxo de que os fins justificam os meios. Já despidos da ética e moral, abjuramos a doutrinas convenientes à pragmática, em deliberada apostasia. Pois, a sociedade é condicionada e reduzida a um imenso cabaré, orientada apenas para a profusão da selecionada clientela. Leões-de-chácaras cuidam, no caso, de aliciar os fregueses, prometendo-lhes a segurança contra eventuais molestamentos. A licenciosidade desse repreensível festim reveste-se de incerta normalidade, adotada mesmo como não-cogente, possibilitando à vontade particular sobrepujar-se à norma coletiva, em reconhecimento do individualismo com índole. Assim, a excentricidade é padronizada adquirindo status de verdade definida no tempo. Mas, convém lembrar, nada é definitivo. E, como observou o sábio do mundo islâmico, Al-Biruni, o tempo não tem limites, e gerações sucessivas são apenas estágios; cada uma passa para a outra a sua herança, que é então desenvolvida e enriquecida, em verdadeira metempsicose. Uma reflexão se faz agora necessária: o que desenvolverão as vindouras gerações se herdarem tão-somente o vilipêndio? Não há que se falar em enriquecer a pobreza, ainda mais quando essa diz respeito a o espírito. Sob o efeito dessas considerações é possível lobrigar um futuro subdesenvolvido, mais familiarizado com o pretérito, jamais renovado, em perpertuação da promiscuidade gerada na satisfação exclusiva do hedonismo. Negar, então, a desordem orgíaca como concepção comunitária será readmitir o homem como ser inteligente, capaz de discernir sabedoria e riqueza, estabelecendo o justo valor de cada uma delas, respondendo tal qual o sábio indiano quando indagado porque os estudiosos sempre batiam à porta dos ricos, enquanto os ricos não eram nada inclinados a virem ter à porta dos estudiosos: “os estudiosos - respondeu ele - conhecem bem a utilidade do dinheiro, mas os ricos ignoram a nobreza da ciência”. Se o idílio não corresponde às expectativas do homem moderno, também não é a voluptuosidade a sua maior aspiração. Se é preciso um real desnudamento, peça por peça, máscara por máscara, necessário é o desnudamento de tanta hipocrisia, de tanto cinismo, acumulados por gerações empenhadas em fazer da “antropofagia” - pela devoração do espírito que deveria animar o homem - o melhor número do seu dissoluto espetáculo.
(Marcus Moreira Machado)

TERÇA-FEIRA, 22 DE DEZEMBRO DE 2009:"ADJACÊNCIAS"

Chego a Mogi das Cruzes. Com destino à cidade próxima, Poá, vou de trem. Três anos nem longos nem rápidos, apenas três anos de pasmaceira, era o tempo que me distanciava de cenas semelhantes às de Calcutá ou Bombaim, lugares onde jamais estive. O comboio parece não ter dono, ou melhor, é de todo mundo e de qualquer pessoa; nenhum sinal existe de que os vagões são conduzidos, em seu quase interminável ziguezague, por um funcionário do governo - é como se uma máquina à pilha ou bateria se encarregasse de todo o serviço, num controle tão remoto quanto a possibilidade de progresso. Mesmo não sendo nenhum 'trem da alegria', certamente faz a 'felicidade' de dezenas de vendedores duas vezes ambulantes - a primeira porque estão em algo que se movimenta, a segunda porque eles próprios se movimentam no 'moto perpétuo' da fome e das guloseimas 'leve três e pague dois'. Melhor pós-graduação em Sociologia Urbana e suburbana não haveria: como ter olhos de turista descuidado e não perceber a 'vida' pulsando em verdadeira e formidável arritmia social? Nada é pré-ordenado, planejado; no contrário, a porta 'automática' necessita da ajuda de três passageiros para ser fechada, o piso já não se sabe do que é feito ou foi feito, tamanha a sujeira que muda a cor, todos os dias, dos corredores trêmulos, confundidos com extensões das ruas e avenidas do subúrbio da 'megalópole'. Esse o eu país, penso eu. Aqui, nas fisionomias demonstrando um cansaço de ontem, no vaivém de uma felicidade sempre prometida e nunca cumprida... aqui, nos olhares e nos esgares de quem corre mais que o trem, nos trastes, nas tralhas desse amontoado de gente que nem gente é mais, que é só cacaréus de um quebra-cabeça multifacetado e esfacelado... aqui é o meu país, a minha pátria maculada, salve, salve, salve-se quem puder! A nação tem o seu cartão postal no CEP 150.000.000. Cento e cincoenta milhões não têm a próxima estação no trem-bala de uma morte inteira. A nação é definitivamente suburbana e não metropolitana, perdida em meio a tanta política ambulativa de 'camelôs' da coisa pública. Em Poá parentes riram de mim quando souberam que eu paguei a passagem do trem. Disseram-me que lá ninguém paga, pois que o comum é pular a mureta; todos sabem que essa prática nem gosto de aventura tem, porque não há mais fiscais, e "é a única maneira de se safar de tantas agruras nessa economia tão difícil de conspirações intituladas de 'planos'". Não precisa ter medo porque não há que temer, lembraram-me. A tal mureta virou servidão, passagem de uso coletivo, eu concluí. Sem dúvida o Brasil parece consigo mesmo, eu deduzi. No jogo de faz-de-conta, nós encontramos alguma 'vantagem' na lambujem, e os governantes fingem não ver, lucrando muito mais por deixar de investir e administrar, concedendo ao seu parceiro-perdedor um proveito aparentemente significativo, mas de nenhum valor de fato. Os meus ouvidos custam a acreditar que o engodo foi aceito, que a malícia elegeu a velhacaria como hino pátrio da barafunda nacional. E só posso crer, então, na premissa de que cada governo tem o povo que precisa, muito mais do que a linguagem corrompida de que "cada povo tem o governo que merece". Ininteligível, o nosso idioma se forja na cupidez, em discurso desarrazoado de homens insanos! No arrabalde da civilização, a nossa megalomania é a nossa única grandeza, vendida como guloseima "três por dois" na maria-fumaça das marias-vão-com-as-outras da nação suburbana. Paus-brasis e paus-de-arara, manchamos todos de vermelho-brasa a honra nacional, sem pejo algum, em ausência total de rubor, na falta de vergonha característica de tantos quantos acendem uma vela para Deus e outra para o diabo. O meu país é um 'trem', é teréns que se joga em cima de caminhão-palanque em 'mudanças' de fim-de-semana, com direito a cachorro latindo e criança chorando. O meu país não precisa de catraca, porque os usuários passam por cima sempre que estão por baixo, sempre que estão de fora. E sempre estão. O meu país é 'trem-fantasma' de um povo que não faz assim tanta conta das espectrais contas emigrantes para os paraísos das ilhas fiscais. Esse play-center não cobra ingresso nem na montanha russa da nossa sobrevivência nem na roleta russa da nossa consciência. E, por isso achamos muita graça, imaginando que tudo é de graça. Em Poá eu aproveitei a oportunidade para beber água mineral que - não entendi a razão - não era de graça, mesmo sendo a cidade uma estância hidromineral. E, confesso, quase me atrevo a indagar se não havia um jeitinho de beber e não pagar. Afinal, no subúrbio do inconsciente coletivo temos como herança essa forma troglodita de existir, vivendo nas cavernas, nos porões e nos vagões da barbárie! A única resposta que obtive foi a minha mesma: não sei se moro num sub país tropical ou se o sul do meu Equador é mais do norte. Embora a minha bússola esteja desnorteada, ainda me restam as estrelas como guia, as mesmas que serviram aos astronautas extasiados enxergando da Lua o azul da Terra. E eu aqui da Terra ainda vejo São Jorge matando o dragão da maldade contra o santo guerreiro glauberiano. Invento que perdi o cordão umbilical da nave mãe, perco a gravidade na ilha perdida da minha fantasia e viajo de teleférico sem cobrador pelos planetas que imaginei para o meu Brasil, com muito mais de vinte e sete estrelas-satélites do pavilhão pátrio. A minha suburbana, nas adjacências, também não conhece estações.
(Marcus Moreira Machado)

SEGUNDA-FEIRA, 21 DE DEZEMBRO DE 2009: "INTERSTÍCIO"

Eu não estou preocupado em agradar ninguém, e muito menos ocupado em magoar alguem. Sinceramente, não sou do tipo que procura a sua liberdade na restrição da alheia. Porém, não aceito o tipo que enxerga ameaça aonde ela não existe, buscando, então, limitar a independência como maneira de manter pela submissão a pouca idéia que possui. A ejaculação verbal precoce é tão prejudicial quando a impotência mental. Mas, acostumados às conspirações de alcova, há quem não se dê conta de que outro é o mundo em que vivemos, onde o que se discute não são as pessoas e sim a diversidade de concepções que elas possam ter a respeito das instituições que as governam. E, também inaceitável, não há que se confundir cada um de nós com a própria norma que criamos para um concenso. Porque divergir não é confrontação; é, antes, acréscimo que se faz á discussão necessária ao futuro antecipado. Quem sabe, fazer a hora é mesmo fazer acontecer? Ou o conforto do eterno regresso tem passagem garantida na manutenção da ordem pela conveniência? O grande problema - e talvez o único da humanidade é terem nascidos os homens com atrofiamento de um dos órgãos sensoriais, o da audição; parece que ouvindo mal também falam mal. Se é o cérebro estimulado pelo ouvido, é surpreendente que ainda exista gente com a faculdade de pensar. Não raro, quer-se impedir a voz, como se as palavras tivessem o poder de ferir uma integridade até então não conhecida. Definitivamente, não é possível ofender a honra de quem não a tem, não se pode afrontar a dignidade de quem jamais a conheceu, porque nunca a exercitou. Porque esses sentimentos adquirem-se potencialmente, porém somente são desenvolvidos pela disposição ao seu exercício. Afastada a exclusividade do pensamento como obra de intenso relacionamento entre as pessoas, pela permuta, causa primeira da evolução, ainda assim o indivíduo unilateralmente, evitando a reciprocidade, tem como obter, pela contemplação e na observação sistematizada, subsídios ao seu crescimento pessoal. formulando, então, as idéias que lhe confiram o o status de verdadeiro homo-sapiens. Contudo, quando foge da auto-crítica e incrimina a crítica, o ser humano perde essa essência humanistíca para adquirir a singularidade de um mutante-social, meio-homem e meio-gusano, vivendo da podridão dos seus semelhantes. Sempre que uma tragédia deixa a humanidade consternada, essa procura no silêncio a expressão máxima do respeito às vítimas. Pois, um minuto de silêncio deverá ser muito pouco tempo para reverenciar as vítimas da grande "hecatombe" que tem dizimado não apenas cem, mas milhares de indivíduos contagiados pela parvoíce. A síndrome de peter pan dissemina a estupidez como regra primeira na fixação de um padrão social fundamentado no poder pelo poder. A verdadeira e sincera homenagem que poderíamos render à nossa própria espécie será a da promoção do silogismo, compreendido este como recurso que é da argumentação. A contenda, a controvérsia pura e simples, não são um verdadeiro discurso; antes, são reles discussão, motivada muito mais pelo instinto pelo que intelecto. Reconhecendo na discreta similitude entre discordância e discórdia as substanciais diferenças entre divergência de opinião e desarmonia própria da desinteligência, teremos todos identificado no homem a sua superioridade real. Porém, conduzido este tão apenas pelo instinto, como disposição natural que é, observa-se não mais que a sua volta a um passado distante, em que ações e reações desencadeavam-se independentemente de senso, norteadas somente por primitivos impulsos. Mais um pouco e a humanidade substituirá a palavra artitulada por linguagem onomatopéica, tal o seu desuso, tal a ausência de juízo, prevalecente nesta que já perde a feição de sociedade para assumir as características de um vulgar agregado. E, sem perfeita identidade, desfeita pelo conteúdo moral predido, a civilização retoma a sua gênese, configurando-se no modelo reducionista da sua ancestralidade. No estabelecimento da abjeção extremada, séculos de luzes e de vozes serão substituídos por uma eternidade de silêncio, o reflexo direto da submissão do diálogo à imposição da necedade.
(Marcus Moreira Machado)

DOMINGO, 20 DE DEZEMBRO DE 2009: "ALHURES"

Lang, melhor que ninguém, discerniu a família neurótica, um apêndice enfermo de uma sociedade ainda mais doente. Ela, que deveria se prestar à estrutura pessoal de cada um de seus membros, ao descumprir esse seu primordial papel, traz a desagregação como motivador principal da angústia. Muito distante de sua origem, nem a urbanidade nem a cordialidade suprem a ausência do amor, hoje uma característica marcante da hodierna "família". Assim, ser preterido nas íntimas relações familiares é estar "marginal" e, consequentemente, angustiado. As designações "pai", "filho", "irmão", "irmã", não são simples títulos honoríficos, mas, ao contrário, implicam em sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, comenta Friedrich Engels, a respeito da família tribal na Índia e na América. E, acrescenta, se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas. Pois, a família, como hoje a conhecemos, não se baseia em naturais condições, mas sim econômicas, sendo mesmo o ápice da propriedade privada a triunfar sobre a propriedade comum primitiva. Por assim ser, é também "a forma celular da sociedade civilizada, na qual encontra-se a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade". Assumir, dentro dessa célula, a "marginalidade" poderá ser a busca de uma nova identidade, fora dos restritos limites da família incapaz. Incapacidade, aliás, derivada de distorções próprias aos padrões morais que sabe insustentáveis, mas que menor risco, no entanto, oferecem diante do comprometimento necessário ao ato de amar. Amar, aqui, torna-se perigoso, porque exige identificação pelas semelhanças e desprendimento pelas diferenças. Ainda mais quando "amar" não é uma simples disposição do espírito, é sim a razão disposta a possibilitar a espiritualidade que lhe complete. Afinal, quem pensa ama. Ou deveria amar, se verdadeiramente pensa. Nesse momento, oportuno é resgatar a etimologia do vocábulo. Em sua origem, a palavra "família" não outra coisa significa que o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem, pois que "famulus" quer dizer "escravo doméstico". Historicamente, então a monogamia não foi absolutamente uma forma mais elevada de matrimônio e decorrente instituição familiar; antes, ela surgiu como "a primeira divisão do trabalho... a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos"- como observam Marx e Engels. E se, comprovadamente, foi ela um progresso, simultaneamente trouxe consigo o "retrocesso relativo", onde o desenvolvimento de uns está diretamente ligado à submissão de outros. O amor, como base da instituição familiar atual, é algo muito recente e, talvez por isso mesmo, muito de acordo com a hipocrisia vigente, quando se chama felicidade ao aborrecimento sofrido em comun. Instituída mais para a conservação e transmissão dos bens de fortuna, a monogamia tem sido, de fato, a pedra angular de uma "família" caracterizada pela conveniência. E se agora ela está desestruturando-se é porque não há mais razão de ser, uma vez que a imensa maioria da população quase nada mais possui que a justifique como intermediária das riquezas entre as gerações. O que resta é, por assim dizer, a família neurótica, ou, se for o caso, "neurotizada". Somente o "marginalizado" é capaz de reassumir a família em novo padrão, correspondente às mudanças operadas na sociedade politicamente organizada. Porque sabe ele da necessidade de modificá-la, justamente por ter sido dela banido, inconformado com o cinismo da sua estrutura. Superada a revolta, é ele quem norteará um modelo para o amor emancipado, transgredindo a debilidade dos retrógrados valores anteriores. Fala-se aqui de ruptura. De um rompimento renovador que assegure o livre pensar para o gesto do amor. A família individual, então, "deixará de ser a unidade econômica da sociedade". Se "eros" e "tanathos" são em nossos dias as vozes mais ouvidas, certamente o são em razão de um veemente declínio moral da humanidade. Após a derrocada final daquela que erroneamente conhecemos por "sociedade moderna", um novo critério moral aproximará homens e mulheres, pais e filhos, irmãos e irmãs, um critério forjado no amor e no afeto recíprocos. Modificadas as relações de propriedade, normas próprias de conduta regularão uma família aonde o amor seja o único moral. A família - isso é inegável - tem progredido ou se modificado na mesma medida do maior ou menor progresso, da maior ou da menor modificação da sociedade. E hoje entre nós a filosofia de vida tem sido aquela tão bem descrita por Abílio Guerra Junqueiro - a filosofia do porco; devorar. E é o mesmo poeta português quem acrescenta: "Mas, como semelhante compreensão da vida e do destino do homem é por demais inconfessável, esconde-se a chaga em linhos brancos". Negar um Estado e um regime repugnantes, que se propagam através da chamada "célula mater" da sociedade, a família, é recusar a dominação para proclamar a liberdade e o amor com signos de uma nova era. (Marcus Moreira Machado)

SÁBADO, 19 DE DEZEMBRO DE 2009: "FASCÍNIO"

Contemporaneamente, muito em voga nos círculos intelectuais supostamente politizados, a expressão "cidadania" tem sido como que uma mais recente bandeira de luta, a conferir "status" de conscientizado a todos quantos por ela se debatem. Essa visão ainda um tanto apaixonada dos heróis modernos, resquício, certamente, de outros tantos momentos de um vago "movimento revolucionário", sobejamente forjado na aquisição de valores estranhos á nossa cultura, mas propícios à propaganda de um universalismo político entendido por "inevitável", pauta pela participação direta das massa populares na construção de um eventual modelo de sociedade mais condizente com os seus anseios. Ora, aqui, como em qualquer lugar do mundo, o ser humano rende-se ao fascínio próprio às novidades, sempre de impacto, no entanto bastante fugazes. A possibilidade de ser um co-partícipe do poder, organizando passeatas ou protestando por reforma agrária, tributaria ou por melhores salários, é uma "ilusão" que faz tão bem ao ego quanto ser a testemunha ocular de uma formidável colisão de veículos em via pública. Afinal, quem não quer poder sair por aí dizendo que a sua existência tem um grande significado, mesmo que essa valoração esteja nos limites do tacanho! É algo como: "não fotografou, dançou!". Assim, como que a esconder as mais particulares frustrações, o registro da presença individual seria uma maneira de aliviar tensões de outra grandeza, não afeitas necessariamente ao campo político ou à área social; algo, enfim, mais ao gosto da psicologia. As campanhas, pois, finalizando o nosso resgate para uma terra prometida aqui e agora, "redescobrindo" os cidadãos que somos, encerram, via de regra, muito mais que a "cidadania" em si. Senão, vejamos a origem, o nascimento desses, títulos: nos primeiros dias do mês de outubro de 1774, Beaumarchais, o autor de "O casamento de Fígaro", tendo um processo com um conselheiro, pleiteou em pessoa sua causa ante o Parlamento, apelando pela primeira vez para a opinião pública; e disse ele - "Sou um cidadão, isto é, nem economista, nem abade, nem cortesão, nem favorito, nem nada que se possa chamar "poder"… Sou um cidadão, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de desconhecido, de inaudito, em França. Sou um cidadão, isto é, o que os senhores deviam ser desde há duzentos anos atrás e hão de ser dentro de vinte, talvez…" A defesa de Beaumarchais obteve grande êxito. E, a partir desse momento, o título de cidadão foi adotado por todos aqueles que se consideraram espíritos liberais. Verifica-se, destarte, que cidadania não é representação do "poder", como pretendem agora os postulantes de uma nova e incerta ordem. Exige-se hoje um comprometimento avesso ao significado imediato daquele vocábulo. E, posto dessa forma, como algo novo, ou melhor, como uma novidade, impõe aos incautos uma regra de conduta fundamentada mais no engajamento que na liberalidade. No mínimo quer-se exclusividade na liderança, com a frágil hipótese da anuência dos liderados, reconhecida na ínfima parcela de poder que esses últimos supõem exercer. No entanto, convém lembrar que outros heróis, de mais ampla magnitude, também privilegiaram o contraditório como estratégia de poder. Assim, o mais célebre herói chinês, Fohi, uma criatura semi-mitológica, ao mesmo tempo em que teria sido o primeiro legislador da sociedade humana, pioneiro também na composição de um calendário e na fundação de um governo com empregados públicos na administração do país e direção do povo, ensinara o tráfico de homens. Doutrinas alternam-se no tempo e no espaço; o que já foi símbolo da garantia das liberdades individuais, hoje é execrado como marca do retrocesso; o positivismo revolucionário de ontem, um ideal de boa medida para os teóricos da República no Brasil, homens que ocupariam posições de relevo na administração pública do país, após ter encontrado em Spencer um ampliador e em Littré o seu reformador, sucumbiu, limitado a pequeno grupo de estudioso, perdendo a força dinâmica da proposta inicial, quando, então, propugnava pelo aniquilamento da Teologia e destruição da Metafísica, enfatizando a filosofia aplicada aos fenômenos naturais. Também hoje, o festejo "socialismo real" do início do século, é soterrado sob as pás do Muro de Berlin, ou deriva à bordo de improvisadas naus arquitetadas sobre câmara de ar, procurando, desesperadamente, uma nova rota, dessa vez para o destino menos incerto do capitalismo. O Liberalismo de outrora é modernamente alcunhado "neoliberalismo", e, assim, interpretado como severa ameaça ao cidadão e aos seus direitos fundamentais. Porém, "liberal" já foi expressão daquele que, tendo idéias avançadas em Sociologia, era favorável à liberdade política e civil. Visto agora apenas sob a ótica da Economia, passou a traduzir-se em não confirmada versão da exploração dos pobres pelos ricos. Preferível, pela inerente sensatez, considerar, então, a universalidade daquele que, tendo sido consagrado como dramaturgo, o parisiense Beaumarchais, construiu de fato para com o progresso de toda a humanidade, enxergando-a além das fronteiras do poder político ou religioso, para devolver a cada um aquilo que cada um deve procurar em si mesmo - a sua liberdade.
(Marcus Moreira Machado)

SEXTA-FEIRA, 18 DE DEZEMBRO DE 2009:"REVENDO"

Em reprise para todo o país, a novela que tem emocionado dezenas de gerações de espectadores: “A Descoberta do Brasil”. Em horário nobre, a fidalguia lusitana encena a virilidade da ibérica península, mescla de mouros e romanos, na personagem do aventureiro benfazejo. São cinco séculos de arroubos a enaltecer a “ilha” em que se plantando tudo dá. Vera Cruz de ontem, descoberta no acaso premeditado; ocaso do pau asiático brasil, que no Mundo Novo ganhou letra maiúscula; pouco caso dos “selvagens” que saborearam sardinha em bispo. Oh! Álvares...Outro Pedro também diria fico, pelo bem do povo e - óbvio - facilidade geral da majestade. Pedra amarela minando na derrama, esquartejando alferes, separando a Marília do Dirceu. Caramuru, salvo pela sua magreza, cevado pelos Tupinambás, nos dá um lindo capítulo, fundando tão nobre estirpe ao desposar Paraguaçu. Mas, quantos outros naufrágios, quantos sobreviventes ainda teremos? Estandartes bandeirantes preando os bichos do mato, buscando preciosas pedras para além das Tordesilhas. Todas as raças, todos os credos, na baía, nos planaltos de todos os santos. Dê ouro para o bem do Brasil, para o bem da Inglaterra, para o bem de quem nos quer tanto bem. E Pedro, o segundo? Pobre menor abandonado, refém da cobiça além-mar! Leopoldina virou trem, virou marquesa a consorte filial, honrado a índole lisboeta. Santa Maria! Pinta e Nina quase passam por aqui. E se passassem? Deixavam inscrições rupestres para Caminha plagiar, quem sabe. Coisa louca! Maria, a rainha, coitada, interditada enquanto o sexto João sacava no Brasil o seu próprio banco. Portos abertos, escancarados, ancorando o comércio do comum mercado europeu. Mauricéia desvairada ainda deve a Nassau o requinte cultural nas plagas americanas do Recife. Hereditárias capitanias, hereditárias manias de retaliação. Heróis dos latifúndios, é sua a glória do desenvolvimento e do progresso; apesar de todas as vicissitudes decorrentes dos azares históricos, esta terra ainda há de tornar-se um imenso Portugal, há de ser um império colonial, mas mãos de intrépidos desbravadores descendo da bacia do Tietê o Paraíba do Sul, cruzando a serra da Mantiqueira, rumando Jundiaí e Moji, além do Salto de Urubupungá, para alcançar o interior; construindo a geografia no novo continente, vilas ricas expandirão vastidões pelas sendas mato-grossenses, unindo o amazonico planalto à foz do lendário rio, pelo Topajós, Tocantins e Madeira. Quando esplendor! Portugal é espanhol? Sessenta anos de hispânica coroa, a dividir a riqueza nacional! Quem descobriu o Brasil? Quem meteu os pés no brasil? A Europa cá veio dançar valsas vienenses e ainda trouxe d’África o lundu, temperado com pimenta do reino. Quando açúcar com café nas usinas e nas lavouras dos senhores engenhosos! A Ásia cabe aqui. Venham todos, queremos vocês. Venham genoveses, florentinos, o Bráz vos espera. Venham sírios - libaneses mascatear, no sertão que vira mar, rios de dólares. Nós somos um povo gentil, coroação e braços abertos para o mundo. Temos norte e nordeste, sul e sudeste, noroeste e sudoeste este imenso. Somos presidencialistas, somos parlamentaristas, republicanos e monarquistas. Somos qualquer coisa, somos todas as coisas a um só tempo, porque - pluralistas - não discriminamos ninguém. Venham, o trono está vago a qualquer tempo, pois há quinhentos anos rendemos homenagens, não seria agora que inventaríamos ser brasileiros. Desculpem-nos a dívida externa, não foi nossa intenção, não pretendíamos ser pobres e dar tanto trabalho. Pagaremos. São suas as nossas reservas, em pau-brasil com seca nordestina, em cana-de-açúcar dos coronéis, em borracha dos seringais florestais, em café dos barões, em mão-de-obra de pau pra toda obra. Nossos portos ainda estão abertos à navegação, mesmo que seus aeroportos estejam fechados à nossa imaginação. (Marcus Moreira Machado)

QUINTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO DE 2009:"VALORAÇÃO"

Vivo assediado por pessoas bem intencionadas. Eu mesmo sou deveras bem intencionado, mesmo sabendo que entre intenção e gesto há uma distância muito grande. Já acreditei em muita coisa, até em Nietzsche, que em pouca coisa acreditava. Procurei uma verdade mais permanente, que não a de “um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antroporfismos... enfatizadas poética e retoricamente”. Nos “arquétipos” de Jung procurei explicação para o primata que de quando em quando se revela em cada um de nós, na barbárie que todos cometemos dia após dia. Aderindo à teoria economicista, pensei encontrar refúgio na história, e nela poder intervir, não como coadjuvante e sim protagonizando-a. Sociólogo de botequim, exaltei Durkheim no tempero existencialista de Camus, negando valores e inventando outros tantos. Não fui o único; não sou o único. Muitos quiseram - e ainda insistem em querer - a paz, substituindo os horrores e a infâmia das guerras pela majestade do amor. Utopia, acreditávamos, não existia; era questão de tempo. Como o tempo insistia em não chegar, ouvimos Krishnamúrti, desistindo, então, de um aprendizado que nos libertasse da nossa miséria, renunciando a ensinamentos vários sobre o caminho libertador de um pensamento ou de uma prática qualquer; procuramos revelar-nos a nós mesmos, a fim de que pudéssemos ver o que éramos e depois esquecer-nos; enfim, pretendêramos sair do ego, chegar à criatividade pela visão do nosso vazio e descobrir, simultaneamente, o amor. Balela, muita balela! Nossas boas intenções nada mais fizeram que ocultar a omissão dos nossos gestos. Ainda hoje, não damos esmolas para não estimularmos a mendicância, e condenamos à morte os miseráveis como exemplo, no cínico e absurdo contraste entre a suposta indolência dos despossuídos e a obstinação dos bem sucedidos. Se sou incapaz de gestos, não mais quero me capacitar com intenções. Seguir a máxima de São Tiago: “Pratica tua fé com obras”, deveria ser a única boa intenção de todos quantos proclamam um mundo melhor. Irreligioso que sou, entendo como verdadeiro o significado de “eclesias” para determinar o sentido de Igreja, ou seja, um sentimento e uma conduta de dentro para fora de nós mesmos. E vejo assim que se “sem a justiça, os Estados não passam de bandos organizados de ladrões”, como asseverou Santo Agostinho, e se entre nós o clamor geral é pela justiça, esta só se fará presente quando indentificarmos todos, em ações positivas, aquilo que deverá vir de dentro para fora de nós mesmos. O que vale dizer que Igreja e Estado, instituições autônomas, urgem ser revitalizadas em suas “práxis”. Não podemos mais nos esconder sob o manto das estruturas políticas dessas organizações sem incorrermos no risco de discursar no vazio, de clamar no deserto. Para ser sincero, não sei a quem cabe minha reflexão, ou se ela é mesmo reflexão. Talvez não seja mais que uma advertência, a mim e a todos quantos se batem pelas intenções. Ou, se nada disso, Zoroastro estava mais certo, ao afirmar o renascimento pelo caos. Se assim for, o nihilismo é substrato para o marco zero, indispensável para renascer das cinzas a fênix libertadora. Certo é que algo de humano há em nós, ainda que sejamos políticos, religiosos; indubitável que anterior às nossa condições sociais, muito antes de defendermos quaisquer teorias, um sentimento comum nos unia. Se o medo do desconhecido, se o instinto de preservação da própria espécie, não faz diferença; não nos dizimávamos, e nem intenções tínhamos, boas ou más. Éramos puro gesto, e puro gênio. Somos, agora, nada mais que resto nos propósitos estóicos ou altruístas desprovidos de pragmatismo. A verdade do valor prático é a verdade imediata que edifica. Dela poderemos nos orgulhar, pois nela veremos as obras, antes promessas escudadas no valor empírico de uma vaga e incerta nobreza de espírito, outrora sublimadas na minha, na sua, na nossa boa intenção. (Marcus Moreira Machado)

QUARTA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO DE 2009:"NA CARA"

Eu quero morrer na praia, insistindo que a onda é minha. Eu sou muito mais que teimoso, bastante o suficiente para dizer que ganhei. Não sei de que, mas certamente ganhei; se tem de existir um perdedor, então que ele não seja eu. Entregar o jogo não tem cabimento. Torcida para vaiar é o que nunca falta; porém, festejar aquele temendo gol de placa, dizendo "é isso aí garoto... pisa fundo, estamos com você", é algo muito raro, porque todo mundo quer ser artilheiro nessa pelada de várzea que é a vida mesquinha dos provincianos. Mais fácil é a galera sentir-se forte e varonil com o chute que dá no suposto adversário. Que espírito é esse, o que anima os medíocres a confinar em inaudito exílio todos quantos não são conformados com a peleja do faz-de-conta?! Por que essa mentalidade tacanha a querer expurgar em covarde assepsia?! Como explicar que, ao vestir a carapuça feita sob encomenda, a velhacaria não se dê conta de sua pequenez?! Ah, meu amigo de fé, meu irmão camarada...! Você estaria ao meu lado para o que desse e viesse, sempre que eu lhe dissesse apenas o que lhe fosse aprazível aos seus ouvidos sensíveis e aos seus lábios delicados que encerram essa sua língua ferina de alcoviteiro nato. Não é assim, hein?! Que nada, você está sempre pronto para dizer que eu sou um inconseqüente, que só sei agredir todo mundo, de graça, por pouca coisa... Mas, o que você não quer e não pode admitir é a inconveniência das minhas palavras quando elas vão contra os seus mais vis interesses, todos aqueles que lhe garantem um duvidoso prestígio junto aos seus pares. Se há algo de que eu já esteja muito cansado é de ter que considerar que no fundo, no fundo todo mundo é bom. Definitivamente, não sou escavadeira nem arqueólogo para ficar revirando tanta podridão até achar algo que preste, alguma coisa de real valor. E se você me critica por aí, dizendo que, além de você mesmo, ninguém me tolera, que eu sou mal visto por fulanos e sicranos das mais altas patentes... Se tudo isso que você diz a meu respeito é dito na minha ausência, perceba o quanto eu incomodo por não ser aquilo que você tem certeza que é - um adulador de primeira, que só faz o joguinho sujo do compadresco político-partidário, político-profissional, político-político, sempre pretendendo assegurar o seu lugarzinho no banho de sol do cativeiro a que está submetida a sua consciência, condenada à prisão perpétua pelos donos da razão aos quais você vendeu a sua própria. Se eu faço tanta questão de 'ofender', de 'agredir', é porque no raso, no raso eu não preciso procurar o que fede: você! Você é mal cheiroso, 'troca de roupa e não toma banho', fingindo esperteza que não possui, asseverando o que não conhece, conspirando o próximo golpe, o imediato conchavo. Ah... Gregório!! Como você foi genial, Gregório de Matos, ao reduzir reis e escravos, padres e fiéis, senhores e vassalos a uma e só uma insignificância, ao pouco tamanho, à pequena estatura dos seres humanos medíocres. Porque nenhuma diferença existe entre um homem e outro, sempre que em comum tenham eles a mediocridade de espírito, a despeito de suas aparentes diferenças sociais. Pois o célebre General Custer não foi capitulado por não acreditar na verdade contra si usada como arma letal? "The little big man", um anônimo, conhecia muito bem a melhor e mais eficaz maneira de subjugar um poderoso: dando-lhe mais poder, que ele haveria de recusar por crer apenas naquele oriundo de suas convicções limitadas. Você sabe que eu sei que você nada sabe. E esse seu único conhecimento lhe obriga a considerar-me desprezível. Aceitar-me seria também aceitar a sua mais completa ignorância no que diz respeito àquele que é o sagrado e inalienável direito do ser humano - o de poder manifestar a sua opinião sem render-se aos despropositais imperativos das circunstâncias econômicas. Esse patrimônio, o da liberdade, é para mim por demais importante, e eu não o troco por fatia alguma de poder algum. Se alguma herança eu pretendo deixar aos meu filhos, essa será a da dignidade própria ao exercício da cidadania. Você e seus pares crêem que eu deva ser recolhido a um nosocômio especializado em distúrbios psíquicos; prefere considerar-me temerário e, por isso, quer evitar-me. Mas, deixa disso, pois nenhuma extravagância da minha parte é equivalente à sua contumaz estroinice. Se há alguma diferença - e essa é fundamental -, ela está no fato de que você, um fanfarrão que é, sabe mesmo levar a vida, mas a vida a que está submetido pela razão alheia à sua própria, a determinar o seu comportamento de 'bom menino'. Então, saiba que a sua vitória não depende da minha derrota, uma vez que os nossos objetivos são diametralmente opostos. Comigo, aquela história de "o rei morreu, viva o rei" é muito própria da vassalagem com vocação para oprimido. E, como bem lembrou o Millôr Fernandes: "Quem se curva aos opressores mostra o traseiro aos oprimidos". Quer dizer, por mais que se pretenda vaselinar, pode apenas doer menos, mas ainda assim dói. Assim, nessa minha ínfima parte que me cabe nesse 'latifúndio', reinvidico 'usucapião' desse terreno fértil que poucas pessoas cobiçam - o do inconformismo; e insisto em fincar a minha humilde bandeirola na ilha a que muitos buscaram me confinar. Se mais tarde a minha onda predileta for disputada por 'surfistas' da moral e dos bons costumes, eu terei a consciência tranqüila para revidar os achaques que os comportadinhos do 'reino da garotada' querem me apregoar. Enquanto isso eu brado mais um vez: estou nem aí com você, otário! (Marcus Moreira Machado)

TERÇA-FEIRA, 15 DE DEZEMBRO DE 2009:"VIAGEM AO CENTRO DO UNIVERSO"

Situada na origem da literatura grega. a epopéia homérica da "Odisséia", inspirada no labor e nos perigos, possui momentos de rara exaltação do ser humano e da dignidade que imagina-se o seu maior atributo. E é na recepção de Ulisses pelos Féaces que essa característica fica registrada, quando Alcino, interrompendo o aedo, ao perceber que Ullisses derramava de suas pálpebras comoventes lágrimas, adverte: ... 'todo homem, nobre ou miserável, possui, desde nascença, um nome, que os pais lhe deram ao vir ao inundo. Dize, pois, qual a tua terra, o teu povo, a tua cidade. para que nossas naus dotadas de inteligência lá te reconduzam.' Decorridos séculos na história da civilização não apenas Ulisses é um mito, mas também a humanidade parece ser exclusivamente legendária, tendo perdido, ao longo do tempo, o seu real sentido. Hoje, Dizimados por milhares de guerra sucessivas, o 'homem' é simultaneamente vítima e algoz da sua própria cupidez. A 'guerra', um fenômeno político social, como ensina J. B. Magalhães. 'foi outrora fator essencial para impulsionar os progressos da civilização... A partir, porém, do momento em que os progressos da civilização deram à humanidade consciência de que constituía um todo fundamentalmente homogêneo... a guerra deixou de ser fator estimulante da evolução'. Dessa maneira, se a moral na época de Homero esteve reduzida à admiração pela bravura guerreira por um lado, por outro também foi alicerçada na fidelidade à amizade, na reprovação da malidicência, da traição, da covardia e da arrogância. No entanto, o que dizer da moral contemporânea? O que comentar sobre uma civilização que, a despeito de suas realizações científico-industriais, tem eleito como básico elemento da -sua suposta prosperidade a guerra, e dela, como alvo, o 'homem'?! Os orientais, notadamente os chineses, acreditam no ser humano vocacionados para a Paz, atribuindo à supremacia dos seres divinos o destino da humanidade, recomendando, então. os ensinamentos dos seus sábios a resignação como norma de conduta. Essa 'filosofia' um tanto peculiar magistralmente foi ilustrada por Pearl Sydentricker Buck, a primeira mulher no continente americano a ser agraciada com um Nobel, o de Literatura. Em seu romance "A Estirpe do Dragão, narração da história da família de Ling Tan, um humilde lavrador chinês que vê sua terra ser assolada pela guerra, e sem entender a atrocidade, serenamente aceita o acontecimento, Pearl Buck diz, através do personagem: "Os deuses fizeram-nos, os seres humanos, de carne macia que pode ser ferida facilmente, porque eles nos destinaram, para o bem e não para o mal. Se eles fossem capazes de ver o que os homens fariam uns contra os outros, ter-nos-iam dado cascos, corno os das tartarugas, nos quais pudéssemos esconder as nossas cabeças e todas as outras partes macias do corpo." A sabedoria oriental é antes de tudo uma advertência à estupidez que sistematicamente tem desfigurado a raça humana. Insensatos, preferimos privilegiar a ancestralidade beligerante dos primórdios da civilização humana, decaindo sempre, ao invés de procurarmos apressar o destino a todos nós reservado pela Criação - a comunidade supranacional apartidária, unida no congraçamento de diferenças étnicas, econômicas e culturais. O sideral espaço por nós já encontrado, por mais grandioso, ainda é exíguo, se comparado à uma outra imensidão em quase nada explorada: a nossa alma. A viagem para o interior da grande morada espiritual vem sendo há muito adiada, pois nenhum ser extraterreno imaginável poderá assemelhar-se à estranha criatura residente no âmago de nós mesmos, o que certamente pressentimos e queremos evitar. Mas, inevitável, aproxima-se o momento da decisão, quando, para não sucumbirmos, necessariamente escolheremos a paz como exclusiva condição da nossa sobrevivência. "Esperança" tem sido compreendida como um exagerado otimismo de pessoas desprovidas de senso da realidade. E, definitivamente não é isso! Na esperança existe um ponto e um prazo marcado, um lugar e um tempo determinado. Sensatez. então, será aguardarmos o triunfo da única soberania - o governo da equanimidade, a primazia do altruismo e o império da benevolência. Mas, haverá êxito nesse projeto se existir disposição em construí-lo, ânimo em vê-lo além do mero esboço, vontade em percebê-lo além da nossa humana fragilidade, como um desígnio divinal, traçado por mãos mais habilidosas, num intento superior aos planos débeis dos estratagemas que tão somente tem assegurado a cada um de nós a própria perplexidade diante do que se nos afigura inaudito. A religião, assim, consagrará o 'homem' como templo do 'homem', em perfeita sincronia com o Deus que quer habitar a sua criação. fecundando toda uma raça que, agora renitente, não é dona de nada a não ser da saga inspirada na presunção da maioridade. Esperança, deveras, é a ambição de todos quantos crêem na possibilidade como promessa a ser cumprida, porque lúcida, porque consciente, porque sincera. (Marcus Moreira Machado)

SEGUNDA-FEIRA, 14 DE DEZEMBRO DE 2009: "TERRÁQUEOS"

Esperar de um projeto político a redenção da humanidade é crer na improvável hipótese da existência de alguns poucos homens melhores que os demais. Nesse caso, ainda é mais prudente traduzir "carisma" por uma "faculdade sobrenatural"; e, definitivamente, nesse sentido nenhum líder a tem. Quando muito, aqui e ali despontam dirigentes mais hábeis em psicologia das massas, o que de fato é mais carreado para a manipulação pura e simples do que para a condução honesta e progressista. A advertência de Thomas Merton, em "A Montanha dos Sete Patamares" é, no momento perfeitamente cabível: "continua a ser... ingênuo supor que membros da mesma espécie humana, sem haver mudado nada a não ser suas mentalidades, possam dar uma volta súbita e produzir uma sociedade perfeita, quando nunca puderam no passado produzir nada a não ser a imperfeição ou sequer a menor sombra de justiça". E, mesmo em se tratando de alguma mudança operada no estado psicológico de homem contemporâneo, essa evolução não significa exatamente progresso. Antes, o que se constata é a sua redução aos estreitos limites do egocentrismo, a gerar a mais significativa frustração do indivíduo perdido em si mesmo. Por isso "o paradoxo da solidão moderna... em que aqueles que só amam a si mesmos odeiam estar consigo mesmos". Se há alguma esperança concreta, ela não reside na ignorância. Olvidar a trajetória do ser humano na terra, toda marcada por laivos e conspurcações, é reafirmar uma falsa superioridade da raça, em obliterada presunção. Pois, os fatos históricos não admitem a inocência, sendo mesmo o registro da perfídia como que o nosso único atributo. Passados já tantos séculos de civilização, desprezamos, ainda, a "civilidade" como regra primeira da cidadania. Opostamente, tem havido constância no predomínio da barbárie, quando a crueldade é dissimulada em ordenamentos que nada têm de sociais, porque não propiciam a extensão de vantagens particulares à sociedade inteira. Seria a mais cândida inocência uma pessoa pretender conhecer bem a História "a ponto de supor que após todos esses séculos de sistemas sociais corruptos o imperfeito possa eventualmente se desenvolver algo perfeito e puro"? Até onde o poeta conseguiu enxergar mais que o político? Pois, no dizer de Raul de Leôni, "... a vida passa... efêmera e vazia/Um adiamento eterno que se espera,/Numa eterna esperança que se adia...". Temos notoriamente sido alimentados de uma esperança desacreditada até mesmo pelo mais inspirado bardo. Então, a dor não necessariamente deve ser uma forma de adquirir conhecimento, pois que se isso fosse uma verdade já teríamos povos amadurecidos, em meio a tanto disparate a manter a humanidade em permanente flagelo. Realmente, "deve haver uma sabedoria além daquela que se aprende através do sofrimento...". Fulton J. Sheen, com muita propriedade, já se ocupara em discernir o mal que a todos nos aflige, quando, no definir o sexo, o egoísmo e a necessidade de segurança como "três fogueiras inseparáveis, postas a arder dentro da condição humana", afirmou não existir qualquer culpa necessariamente associada a estes impulsos diferentes e dominantes, e, concluiu, o mal só ocorre quando há desordem. Obviamente, percebemos essa desordem ao defrontarmo-nos com o gigantismo das nossas instituições - a projeção de nossa megalomania. Uma inferioridade sublimada está oculta em nossas insólitas obras, todas muito mais voltadas para um cálido estratagema de dominação do que direcionadas ao aprimoramento da moral e do espírito. O humano isolamento é uma experiência profunda e intimamente vivida. Assim como em Franz Kafka, as mesquinhas preocupações cotidianas da manutenção de empregos e dos lucros também escapam às leis do espaço e do tempo, "tornando-se como que símbolos de uma realidade transcendente". E uma indescritível sensação de pesadelo e mal estar é por todos nós experimentada, em invitável metamorfose. Tudo o que se nos afigura por demais desesperador está a exigir um novo "corpo", uma nova "forma", algo mais fantástico que nos devolva a cada um de nós, depois do enorme pesadelo experimentado no dia-a-dia. A desorientação tem sido o mau roteiro da atualidade - imaginamos seguir adiante, quando, atônitos, ainda caminhamos em círculos, sem plausibilidade alguma de evolução caracterizada por progresso real. Adiamos a maioridade da raça humana no planeta Terra, ocupados que estamos em reafirmar a convicção em poderes inexistentes. Já que se disse que o homem é um projeto que não deu certo. Porém, quem o disse foram outros homens, acreditando-se imbuídos de redefinir o juízo de valores de nossa civilização. Deveriam eles, no entanto, ouvir o conselho de Laurita Mourão: "O julgamento humano é sempre periférico e pensa-se na parte exterior das atitudes sem atentar para o profundo sentido da dor que não aparece".
(Marcus Moreira Machado)

DOMINGO, 13 DE DEZEMBRO DE 2009: "COLÓQUIO"

Madrugada adentro, na insônia que insiste em me fazer vigilante, recebido eu tenho visitas inesperadas. Noite dessas, Barbosa, o Ruy, me fez severa advertência: “pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem, as que mandam e desmandam em tudo; a saber: num país onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando”. Ruy, ponderei, os tempos são outros. Sou colhido de surpresa com a entrada em meu escritório de um poeta (seria um amigo de Barbosa?) por mim desconhecido. Com a certeza de que o clamor de justiça se perde no espaço e no tempo, cantou o “menestrel”: “Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde, desde então, corre o infinito”. Perdendo a noção do tempo, um tanto entusiasmado com o bate-papo, retruquei: vocês são por demais pessimistas, e certamente deixaram de acreditar no Estado como forma da organização nacional. Subitamente, acorreu em defesa dos meus visitantes, o doutrinador Luis Racasens Siches. Com veemência singular dirigiu-me a sua preleção: “O grande erro cometido pelo transpersonalismo é o seguinte: não se dá conta de que a coletividade não tem realidade substantiva, de que não tem um ser por si e para si mesma, independente do ser dos indivíduos que a compõem. Em troca, o ser do indivíduo consiste num ser por si e para si mesmo, num ser autônomo e independente. Por isso, a coletividade deve respeitar o indivíduo, no modo de ser peculiar deste, nos valores próprios que lhe são destinados, e reconhecer a sua autonomia. O indivíduo não é pura e simplesmente uma parte do todo, ele é superior à sociedade, porque é pessoa no pleno e autêntico sentido desta idéia. A coletividade careceria de sentido se não se afirmasse como um meio para o indivíduo”. Atento, eu ainda resistia aos brilhantes argumentos. Ouçam-se, meus amigos. Estou sinceramente feliz com a visita que me fazem, mas será mesmo que isso tudo se aplica, em caso concreto, ao Brasil? Cá em nosso país, o Estado adota a concepção personalística, sendo, então, apenas um meio posto à disposição da pessoa humana do brasileiro? Vocês parecem querer me sugerir que o problema é político, como sendo ele o causador da má administração brasileira. Quase que em uníssono, sou interpelado: “A política repercute na administração, em qualquer tempo. Mas, hoje ela tem substituído a própria administração. Observe, Marcus. A majoração dos salários (o mínimo geral ou profissional, os de certas categorias econômicas, a lapsos cada vez menores) tem repercutido imediata e intensamente nos custos industriais e comerciais, consumindo logo, na voracidade inflacionária, o aumento demagógica e ilusoriamente concedido. É claro que, em tal clima, se torna impossível administrar com fecundidade”. Eis que um novo visitante, desta vez um militar, Castelo Branco, bastante entusiasmado com a direção tomada na conversa, faz - com discreta gravidade - uma lembrança a nós todos. Ouvimos, com prudência: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Cinco da manhã, eu ali, na maior e absoluta vigília. Momentânea pausa entre um café e um cigarro. Santo Tomás de Aquino, recém chegado, quer esclarecer: “O social e o político são atributos da essência humana na sua universalidade concreta. Não se pode compreender o indivíduo sem o Estado nem o Estado sem o indivíduo. O Estado é apenas um ser distinto dos indivíduos e nada mais; é uma espécie de corpo místico, como a Igreja”. Um tanto confuso, um tanto cansado, o sono chegando, pergunto ao Ruy o que ele afinal recomenda. Sereno, Ruy me diz: “Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Amar a Pátria, estremecer o próximo, guardar Fé em Deus, na verdade e no bem. Deixei-os ainda conversando. Fui dormir.
(Marcus Moreira Machado)